O "problema" do conceito de Capitalismo de Estado
Será que falar em Capitalismo de Estado é tão absurdo e "dogmático" quanto dizem por aí?
Publicado originalmente em 23/10/21.
O conceito de capitalismo de estado é considerado o fim do mundo nas correntes marxistas-leninistas. Não exatamente pelas insuficiências que ele possa vir a ter, mas pelo apego a um conceito de "socialismo" muito mal fundamentado, que é hegemônico desde sempre por servir ao centrismo e ao frentismo.
Definem socialismo como "transição". Só que caem num problema óbvio: socialismo não é modo de produção. Não existe um modo de produção baseado na propriedade estatal dos meios de produção e o partido no poder. A transição acontece entre o modo de produção capitalista e o modo de produção comunista. Disso não se entende como são tão aversos a reconhecer que determinada transição retrocede ao invés de avançar, que não se pode mais considerar determinado estado como proletário, etc. Na prática, a "transição" é tratada como um sistema econômico estável, um modo de produção à parte.
Quando não se trata o socialismo assim, se usa o argumento dos "elementos socialistas que vão aos poucos avançando contra os capitalistas", tirando o conceito de "elementos socialistas" diretamente do "Problemas Econômicos do Socialismo na URSS" e da literatura oficial da URSS em geral pós-1928 (virada da industrialização acelerada e coletivização da agricultura), principalmente pós-Constituição de 1936 (sabendo ou não).
Mas quais são esses "elementos socialistas", essas "relações socialistas de produção", se não existe modo de produção socialista? Seriam elementos da fase inferior do comunismo descrita na Crítica ao Programa de Gotha? Mas como a produção comunista poderia "coexistir" com uma economia de mercado?
O grande trunfo acaba sendo o texto "Sobre o Imposto em Espécie", de Lenin, em que se fala que o conceito de transição implica que existem "elementos, partículas, fragmentos, tanto do capitalismo quanto do socialismo".
Essas diferentes "estruturas socio-econômicas" na URSS, segundo Lenin, eram: "(1) patriarcal, ou seja, em uma extensão considerável, agricultura camponesa natural; (2) pequena produção de mercadorias (isso inclui a maioria dos camponeses que vendem seus grãos); (3) capitalismo privado; (4) capitalismo de estado; (5) socialismo." Vamos por partes.
Logo no começo o texto expõe uma posição inconveniente: "(...) o termo República Socialista Soviética implica no empenho do poder Soviético em alcançar a transição para o socialismo, e não no reconhecimento do atual sistema econômico como de ordem socialista".
Continua o texto: na Rússia predominava o elemento pequeno-burguês, a pequena propriedade descentralizada. Portanto, os medos de quem criticava que "a Revolução Russa estava se dirigindo a um capitalismo de estado" eram infundados. Os bolcheviques não tinham motivo para temer o desenvolvimento do capitalismo de estado, por três motivos:
1. A economia pequeno-burguesa descentralizada não fornecia uma base para a transição ao socialismo, à socialização;
2. O socialismo precisa da base da produção de larga escala, da centralização, pra futuramente poder "passar do capitalismo de estado ao socialismo", "passar da nacionalização para a socialização";
3. Essa passagem da nacionalização para a socialização estava assegurada enquanto o proletariado tivesse o poder de Estado.
Se fizermos uma leitura justa do texto, o que Lenin define como o elemento "socialista" na formação russa? Era a "correlação" entre socialismo e capitalismo de estado, no sentido de que o reforço da planificação estatal, da contabilidade e controle, e tudo que pudesse contribuir pra esse objetivo, seriam subordinados ao proletariado na condição em que ainda existisse o Estado-Comuna, ou o caminho político a isso, e o partido proletário. Esses elementos permitiriam a futura passagem da nacionalização para a socialização: "socialismo é eletrificação + sovietes".
O elemento "socialista" da transição é indissociável do elemento político. Não é difícil: o texto acaba de dizer que uma economia que não pode ser classificada como socialista pode ser considerada uma "República Socialista Soviética" pelo empenho político do poder soviético em alcançar a transição para o socialismo.
O texto não aponta nenhum "modo de produção socialista" que coexista com o capitalista, nem nenhuma "relação de produção socialista" ou qualquer "elemento econômico socialista" estável, fechado. Ele toma o cuidado de dizer que a nacionalização não é socialista em si: ela pode ser socialista, pode ser usada como instrumento econômico da transição ao socialismo, numa condição inseparável do elemento político: se o proletariado tiver o poder de Estado. É na condição desse poder que a tarefa da nacionalização se "correlaciona" com o socialismo, superando a descentralização das unidades produtivas, enquanto o poder proletário garante a futura passagem à socialização. A manutenção do poder proletário e a eventual passagem à socialização é, portanto, a condição para que consideremos que a transição continua.
Então o primeiro objetivo do proletariado organizado enquanto classe é a tomada do poder político. Isso é absolutamente correto. A revolução proletária e a ditadura do proletariado, enquanto elementos políticos, não exigem a imediata superação da lei do valor, do mercado, do salário e do dinheiro. A transição é um processo contraditório, sem tempo de duração definido, nem formas definidas exceto o imperativo: um partido, programa e órgãos de poder que digam respeito às necessidades específicas do proletariado enquanto classe.
Mas se convencionou chamar a ditadura do proletariado de "socialismo", e isso é um erro. Confunde dois aspectos diferentes, tratando a ditadura do proletariado como modo de produção à parte. Trata a estatização como "elemento econômico socialista" em si, apagando a necessidade de direcionamento do partido proletário. Oculta a necessidade da passagem à socialização, reduzindo assim a própria concepção de "direcionamento do partido proletário" a uma concepção restrita de "direcionamento político", incapaz de avaliar quando o direcionamento especificamente proletário deixa de existir. O elemento econômico da planificação estatal é tratado como se fosse em si o elemento político do direcionamento do Partido Comunista: está feita a operação que define o capitalismo de estado como "socialismo".
O socialismo, enquanto fase inferior do modo de produção comunista, sim, é a superação da lei do valor, do mercado, do salário e do dinheiro. A consequência dessa caracterização não é o imediatismo (apesar de existirem correntes que interpretam assim), mas a caracterização correta de qual tipo de transição a ditadura do proletariado está operando, para qual objetivo. A "forma política enfim encontrada" não pode sobreviver com a delegação de poderes burguesa, seja sob formas "ditatoriais" ou "democráticas", e não pode sobreviver indefinidamente sem a passagem à socialização. O estado se agigantar, ao invés de se direcionar politicamente de forma concreta à sua dissolução, é um mal sinal, e não algo irrelevante. O avanço da internacionalização, sob a forma de um partido mundial do proletariado, que não deixe de ser esse partido para se tornar um instrumento subordinado à geopolítica de um país, é uma necessidade. E por aí vai. Lenin nunca deixou de apontar essas necessidades.
O conceito de capitalismo de estado é estigmatizado porque se pensa que os seus defensores são todos imediatistas. Falar em capitalismo de estado seria necessariamente repreender as revoluções passadas por não terem abolido o Estado, o mercado e a nação imediatamente. Seria um conceito "puro" e "acadêmico" de socialismo, a que os "marxistas-leninistas" contrapõem um socialismo "pragmático", "conectado com a tarefa da construção estatal pós-revolucionária". Contra o "purismo", o socialismo teria que ser definido como "a transição", independente do estágio em que esteja.
Podem existir correntes que operam o conceito de capitalismo de estado no sentido imediatista. Culpam os bolcheviques por terem tomado o poder, repreendem a busca pela planificação estatal como um desvio em si... Mas não é o caso de todas as correntes e autores que usam o conceito. Como se viu, Lenin mesmo usava esse termo e apontava que a URSS se dirigia a isso. Dizer que a URSS nunca foi socialista é simplesmente avaliar que ela nunca conseguiu ultrapassar essa etapa. O fenômeno do stalinismo, pós-1928 foi a consolidação do capitalismo de estado, das condições que se pretendiam construir para a passagem ao socialismo, mas agora com o elemento político dos órgãos de poder proletários e do partido proletário completamente destruídos ou neutralizados. Com essa fraqueza, mesmo o capitalismo de estado não se sustentou por muito tempo nessa forma inicial, ficando aquém mesmo da centralização que se imaginava (vide a agricultura ter ficado relegada ao kolkhoz), e logo os mecanismos de mercado pressionaram por um retorno e romperam a casca estatal: surge o fenômeno do khrushchevismo, apoiado na base stalinista e dimitrovista.
O conceito também não tem nada a ver com tempo. Pode-se avaliar que a revolução isolada nacionalmente não consegue manter a transição indefinidamente, a perder de vista, por décadas e décadas, com base na análise das experiências passadas; mas uma caracterização mais atenta nos obriga a dizer que a questão não é o tempo, mas o critério. Não se trata de apontar um limite, e bater o martelo que a revolução tem uma, duas ou três décadas de prazo antes da transição degenerar. A questão é analisar objetivamente essa revolução, e saber apontar quando ela deixar de ser socialista, proletária, porque não podemos nos dar ao luxo de chamar de socialista e proletário algo que não é. O socialismo não pode se basear num critério "pragmático" ou de piedade: "foi o que deu pra fazer, então vou chamar de socialismo". Isso tem consequências imediatas pra já: uma distorção no conceito de socialismo - afinal, o nosso objetivo - é uma distorção no nosso programa comunista de agora, que estamos agora, nesse exato momento, tentando tornar um operador da revolução proletária na nossa própria realidade. Consequências estratégicas e táticas certamente seguem.
As necessidades que se impõem pra todo comunista em relação às experiências de transição não cessam a partir de as caracterizarmos ou não como socialistas. Não é porque alguém não considera que China, Cuba, Vietnã e Coréia sejam países socialistas ou ditaduras do proletariado que seja necessário silenciar perante agressões imperialistas contra esses países ou defender revoluções coloridas, historicamente levantes interclassistas ("povo" contra a "burocracia"), nacionalistas, fascistas, religiosos etc. que abriram espaço pra aceleração da restauração capitalista mais brutal. Se o critério é de classe, não há espaço pra apoiar esses processos, subordinados ao imperialismo e aplaudidos internacionalmente pela social-democracia e pelos "socialistas democráticos" que sonham em instrumentalizá-los pra enterrar o leninismo de uma vez por todas.
A visão "marxista-leninista" que usa esses levantes interclassistas e o apoio que recebem em certas correntes trotskistas para colocar como tarefa principal a reivindicação do caráter socialista do "socialismo real", consegue usar esse erro como combustível pra desculpar o erro próprio, mas é uma desproporção. Descola o critério que temos que ter na análise de todo fenômeno - a posição proletária, contra desvios democratistas pequeno-burgueses - pra um critério nacionalista de socialismo: "o problema são os que querem internacionalismo demais, enquanto nós estamos preocupados com a construção nacional". Assim, combatem uma tendência pequeno-burguesa pra defender a sua própria, se incapacitando de fazer a necessária crítica dos conceitos pequeno-burgueses, centristas de "socialismo" criados pelo stalinismo, dimitrovismo, khrushchevismo, etc., aquele conceito de "socialismo" que tem como primeira referência histórica a URSS de Stalin, onde viviam "classes amigas"1.
Textos relacionados:
- Maria Turchetto: As características específicas da transição ao comunismo (texto que critica o argumento da transição socialista como “coexistência entre modos de produção”, apontando que se trata de uma transposição mecânica das características econômicas da transição do feudalismo ao capitalismo para a transição do capitalismo ao comunismo)
- Louis Althusser: Conferência sobre a ditadura do proletariado – Excertos (1976)
O conceito de “classes amigas” da literatura oficial da URSS tem origem aparentemente em um relatório de Stalin para o 18º Congresso do PC(b)R, em 1939. Se tornou bastante conhecido nas discussões marxistas-leninistas, sendo citado por exemplo em outras instâncias da literatura oficial, por João Amazonas, pela imprensa do PCB nos anos 50, e por Francisco Martins Rodrigues (criticamente) no texto Notas sobre Staline. Algumas citações parecem suavizá-lo citando apenas a classe operária e o campesinato, podendo dar a entender que se tratava conceitualmente de um sinônimo de “aliança operário-camponesa”, mas o próprio relatório de Stalin expõe claramente que a aliança de classes proposta é mais extensa: “os operários, camponeses e intelectuais que constituem a sociedade soviética vivem e trabalham em amistosa colaboração.” Mas o problema mais evidente do conceito é negar a posição marxista-leninista e anti-revisionista sobre a continuidade da luta de classes após a revolução.