Resposta a uma publicação de Jones Manoel1, publicada originalmente em 19/10/21.
A Crítica ao Programa de Gotha define o socialismo como fase inferior do modo de produção comunista. A ideia de que esse texto define o socialismo como uma "fase de transição do capitalismo ao comunismo" que pode conviver com a mercadoria e o salário é uma falta de rigor conceitual que acaba minimizando a diferença entre estatização e socialização. Afinal, se o socialismo seria definido por uma fase que pode conviver com as relações mercantis, então qual é a base do socialismo? Logicamente, a tomada do poder e/ou as primeiras estatizações, ou quaisquer direções econômicas centrais (ou quem sabe só a tomada do poder). Ou seja, o partido no poder + estatização seriam, por si só, uma espécie de "base socialista" sólida. Há muito a se dizer sobre isso.
Pra começar, o princípio que a Crítica ao Programa de Gotha estabelece para o socialismo, o "para cada um de acordo com o seu trabalho", e os "vales de trabalho", não foram alcançados no "socialismo real". Os vales de trabalho da Crítica ao Programa de Gotha pressupõem o trabalho diretamente social. Não é um conceito compatível com o salário que os trabalhadores recebiam na União Soviética, não é compatível com o dinheiro enquanto mercadoria especial, que serve de equivalente universal do trabalho abstrato e da troca de mercadorias.
Os vales de trabalho seriam de acordo com o quantum x de tempo trabalhado, trocados pelo equivalente em produtos (depois de deduzidas algumas taxas para o fundo comum). Não é algo transferível, acumulável e que circula, como o dinheiro. Os vales de trabalho pressupõem a superação da lei do valor e do mercado:
"Os produtores não trocam os seus produtos" (não há mercado)
"tampouco aparece aqui o trabalho empregue nos produtos como valor desses produtos, como uma qualidade material [sachlich] possuída por eles" (não há lei do valor)
"uma vez que agora, em oposição à sociedade capitalista, os trabalhos individuais não existem mais indiretamente, mas imediatamente, como partes componentes do trabalho total." (trabalho diretamente social)
É superada, ou modificada, a dualidade do trabalho concreto (tempo de trabalho efetivamente utilizado na produção de um bem qualquer; valor de uso) e abstrato (a "gelatina de trabalho humano" que cria o valor de troca).
No capitalismo, o "tempo de trabalho socialmente necessário" determina o valor de troca.
Na fase inferior do comunismo, não há troca, não há valor de troca, não há o dinheiro enquanto medida que iguala a "gelatina de trabalho humano" de forma indiretamente social. A produção não é mais governada pela produção de valor, a produção se volta para o planejamento de acordo com o trabalho concreto e o valor de uso.
Claro que o planejamento da produção teria que levar em conta de alguma forma o conjunto da força de trabalho existente na sociedade. Isso, abstraindo na nossa mente, é de certa forma uma "gelatina" que iguala diferentes tipos de trabalho numa mesma categoria de tempo de trabalho. Mas, no plano da produção da fase inferior do modo de produção comunista, essa abstração não age como força social dominante, quer dizer, o objetivo não é produzir mercadorias, não é produzir valor de troca, o objetivo é produzir valor de uso, então o determinante são os diferentes tipos de trabalho concreto necessários pra produção direcionada pro valor de uso.
Isso no plano da produção.
Agora, no plano da distribuição, é diferente. Se os vales de trabalho valem o equivalente em produtos do quantum x de trabalho, temos no plano da distribuição o trabalho abstrato em ação. Porque só dá pra fazer essa distribuição unificando numa "gelatina". Só que aqui nós já não estamos no plano do comunismo, e sim exatamente dos tais resquícios da velha sociedade capitalista, a distribuição de acordo com o trabalho! As relações de distribuição que se regem de acordo com o "direito burguês".
Ou seja, a distribuição funciona com o "mesmo princípio" que a troca de mercadorias: troca de valores iguais (quantum x de trabalho trocado pelo equivalente em bens). Mas "a forma e o conteúdo" são diferentes. Por que? Porque a socialização dos meios de produção implica que não há lei do valor e troca de mercadorias.
"Nas circunstâncias alteradas, ninguém pode dar algo excepto o seu trabalho e porque, por outro lado, nada pode transitar para a propriedade dos indivíduos a não ser meios de consumo individuais". Há troca entre quantidades iguais de trabalho nas relações de distribuição, mas não há troca de mercadorias. Os produtos são diretamente sociais.
Há trabalho abstrato no plano da distribuição, mas esse trabalho abstrato não é objetificado no valor de troca de uma mercadoria ("tampouco aparece aqui o trabalho empregue nos produtos como valor desses produtos, como uma qualidade material [sachlich] possuída por eles").
O que pra começo de conversa permite que a distribuição seja "de acordo com o trabalho" é a superação da lei do valor, e consequentemente do dinheiro enquanto mercadoria que é a forma geral equivalente, indiretamente social, do tempo de trabalho socialmente necessário.
O salário é a expressão do trabalho indiretamente social, da troca de mercadorias. Pressupõe a dominação do produto sobre os produtores. Os vales de trabalho pressupõem o trabalho diretamente social, e a planificação econômica de fato, o planejamento de fato da alocação dos produtos. Engels, Anti-Dühring (grifos meus):
"A partir do momento em que a sociedade entra em posse dos meios de produção e os usa em associação direta para a produção, o trabalho de cada indivíduo, por mais variado que seja seu caráter especificamente útil, torna-se, de início, trabalho diretamente social. A quantidade de trabalho social contida em um produto não precisa então ser estabelecida de maneira indireta; a experiência diária mostra de forma direta quanto dela é necessário em média. A sociedade pode simplesmente calcular quantas horas de trabalho estão contidas em uma máquina a vapor, um alqueire de trigo da última safra ou cem metros quadrados de tecido de certa qualidade. Portanto, nunca poderia ocorrer a ela ainda expressar as quantidades de trabalho colocadas nos produtos, quantidades que ela então conhecerá diretamente e em suas quantidades absolutas, em um terceiro produto, em uma medida que, além disso, é apenas relativa, flutuante, inadequada, embora antes inevitável por falta de uma melhor, ao invés de expressá-las em sua medida natural, adequada e absoluta: o tempo.
Tão pouco como ocorreria à ciência química ainda expressar o peso atômico de forma indireta, relativamente, por meio do átomo de hidrogênio, se fosse capaz de expressá-los de forma absoluta, em sua medida adequada, ou seja, em pesos reais, em bilionésimos ou quatrilionésimos de um grama. Portanto, nas premissas que estabelecemos acima, a sociedade não atribuirá valores aos produtos. Não expressará o simples fato de que os cem metros quadrados de tecido exigiram para sua produção, digamos, mil horas de trabalho de forma oblíqua e sem sentido, afirmando que eles têm o valor de mil horas de trabalho. É verdade que mesmo assim ainda será necessário que a sociedade saiba quanto trabalho cada artigo de consumo requer para sua produção. Terá de organizar o seu plano de produção de acordo com os seus meios de produção, que incluem, em particular, as suas forças de trabalho. Os efeitos úteis dos vários artigos de consumo, comparados uns com os outros e com as quantidades de trabalho necessárias para a sua produção, acabarão por determinar o plano. As pessoas poderão gerir tudo de forma muito simples, sem a intervenção do tão alardeado 'valor'."
Os "resquícios da velha sociedade capitalista" na Crítica ao Programa de Gotha são, especificamente, o princípio do "direito burguês" na distribuição, do "para cada um, de acordo com o seu trabalho".
Esse princípio é colocado como necessário porque o socialismo surge não das suas próprias bases mas das bases da sociedade capitalista, logo, questões como a não-superação da divisão social do trabalho, da divisão entre trabalho manual e intelectual, do indivíduo burguês, do trabalho como mero meio de vida, e o desenvolvimento insuficiente das forças produtivas. Essas questões determinam que o princípio "para cada um, de acordo com suas necessidades", do estágio superior do modo de produção comunista, ainda não pode ser cumprido.
Então os "resquícios da velha sociedade capitalista" não são quaisquer resquícios que o leitor inventa da cabeça dele, como querem os stalinistas e dengistas. São resquícios determinados.
Essa é a definição do socialismo enquanto estágio inferior do modo de produção comunista, que Lenin, no Estado e Revolução, deixa claro que é a definição que usa. Se alguém quiser, apesar disso, definir o socialismo como “luta entre modo de produção capitalista e modo de produção comunista” independente do estágio da luta, de qualquer forma o reconhecimento do caráter do estágio inferior do modo de produção comunista implica concordar que é essencial que a transição esteja direcionada pra essa forma de organização social, porque ela é a única que de fato supera a dominação dos produtos sobre os produtores. Implica concordar que a propriedade estatal dos meios de produção pode ser um passo importante pra isso, mas só é uma transição socialista se a transição se verifica, se o poder proletário se verifica, se a ditadura do proletariado se verifica. Sem isso, a propriedade estatal dos meios de produção pode muito bem ser uma forma de reprodução do capital.
Aliás, o pressuposto do conceito de socialismo como "luta entre modos de produção" é que a luta pode retroceder, ou seja, ir em direção à restauração plena do capitalismo, ou seja, a propriedade estatal dos meios de produção pode ter um direcionamento capitalista mesmo pós-revolução proletária.
Mas o fato que temos que encarar é que, rigorosamente, apesar de ter se tornado uma ideia comum, "socialismo" e "ditadura do proletariado" não são sinônimos.
Convém lembrar o que Lenin tinha a dizer sobre o socialismo na União Soviética:
"Ninguém, acredito, ao estudar a questão do sistema econômico da Rússia negou seu caráter transitório. Tampouco, penso eu, algum comunista negou que o termo República Socialista Soviética implica no empenho do poder Soviético em alcançar a transição para o socialismo, e não no reconhecimento do novo sistema econômico como de ordem socialista."
Ou seja, revolução proletária, ditadura do proletariado, poder soviético não são sinônimos do socialismo como fase econômica, mas os elementos políticos que operam a "transição do capitalismo ao socialismo", expressão utilizada várias vezes no texto "O infantilismo esquerdista e a mentalidade pequeno-burguesa".
Nesse mesmo texto, é dito que há "correlação" entre a construção do capitalismo de estado e os interesses da transição ao socialismo, na medida em que o elemento predominante na formação social russa era a descentralização pequeno-burguesa. O capitalismo de estado seria um "passo em frente", em relação a essa descentralização pequeno-burguesa (já que o socialismo precisa da base sólida da produção de larga escala e da organização estatal planificada, contra a anarquia da pequena propriedade), e na condição em que o poder proletário se verifique.
Por isso, Lenin explica que a "passagem da nacionalização para a socialização" era ainda uma tarefa a completar, e que se a nacionalização podia ser feita com "determinação política", a socialização ainda exigiria tempo.
Lembrar comentários esquecidos (ou enterrados) de Lenin, como no "Material para Elaboração do Programa da R.S.D.L.P.", na seção "Notas sobre o primeiro esboço do programa de Plekhanov", onde se diz:
"Produção socialista t o m a n d o o l u g a r da produção de mercadorias".
E na seção "Projeto de Programa do Partido Social-Democrata Russo":
"(...) substituição da produção capitalista de mercadorias pela organização socialista da produção de artigos pela sociedade como um todo".
Ou ainda essa passagem destruidora dos "Comentários Críticos sobre a Questão Nacional", que surpreende pela dimensão do quanto o leninismo pôde ser falsificado:
"(...) Tal ideia, aplicada à questão nacional, se assemelha à ideia de Proudhon, aplicada ao capitalismo. Não abolindo o capitalismo e sua base - a produção de mercadorias - mas eliminando essa base de abusos, de excrescências e assim por diante; não abolir a troca e o valor de troca, mas, ao contrário, torná-lo “constitucional”, universal, absoluto, “justo” e livre de flutuações, crises e abusos - tal foi a ideia de Proudhon."
Não se trata de separar ditadura do proletariado e socialismo como duas "fases" estanques. São dois aspectos do mesmo processo: uma coisa é a revolução socialista, o empenho político na direção do socialismo, o alinhamento das alianças de classe (por exemplo, na União Soviética, o debate sobre se em determinado momento o proletariado tinha como seu aliado toda a massa dos camponeses, e portanto estava politicamente ainda nos marcos da revolução burguesa, ou se a demarcação de classe já estava madura no campo e o proletariado tinha como seus aliados os camponeses pobres, e portanto estava politicamente direcionado ao socialismo), o poder proletário; outra coisa é a fase inferior do modo de produção comunista e suas características econômicas.
Os dois aspectos são intrinsicamente ligados, o marxismo não separa mecanicamente o político e o econômico. O problema é que confundir os dois conceitualmente leva, querendo ou não, ao problema de tratar o socialismo como um modo de produção, separado e estável. Remetendo, assim, ao conceito de socialismo que ficou como "oficial" nas correntes marxistas-leninistas desde a virada de 1928 na União Soviética, primeiro país a declarar que tinha alcançado economicamente a fase socialista. O socialismo seria caracterizado pela estatização e o partido no poder, mesmo com as relações mercantis ainda em vigor. O problema desse conceito é que ele nos dá uma base muito frágil pra dizer se a transição ao comunismo está acontecendo ou não, coisa que os desenvolvimentos posteriores da União Soviética demonstraram muito bem.
O que uma compreensão mais correta de socialismo oferece? Não é dizer que a ditadura do proletariado precisa "eliminar imediatamente" a mercadoria e o salário, como diz o estereótipo. É colocar as coisas do lugar: não sendo um modo de produção socialista, a ditadura do proletariado faz a transição do modo de produção capitalista ao comunista, e essa transição precisa se verificar concretamente, não é "a perder de vista". É o que nos permite explicar que, com o stalinismo e a derrota final dos órgãos de poder proletários (é possível dizer que já não tinham poder real no início dos anos 20, mas o stalinismo é um ponto de ruptura importante), já não podia haver "capitalismo de estado sob direção do proletariado", mas capitalismo de estado simplesmente.
Comento a contribuição de Carlos Arthur Newlands Junior, nos comentários da postagem, que diz:
"Lenin vai além: afirma textualmente em 'O Estado e a Revolução' que 'a ditadura do proletariado, o Estado socialista, é um ESTADO BURGUÊS... SEM BURGUESIA' (grifo meu). Portanto, a conclusão óbvia a que chego, cotejando a Crítica ao Programa de Gotha com O Estado e a Revolução, é: 'o socialismo é um capitalismo de Estado sem capitalistas no Estado'"
Essa interpretação, bem comum nos meios marxistas-leninistas, não se verifica.
Lenin, comentando a Crítica ao Programa de Gotha, diz que o direito burguês aplicado à distribuição dos produtos, na fase inferior do comunismo, pressupõe um Estado burguês, porque o direito pressupõe um aparato que possa observar a aplicação desse direito.
O que ele demonstrou com essa observação foi seu profundo entendimento de que o "Estado enquanto Estado" é um instrumento fundamentalmente burguês - é por isso que o Estado proletário "não é mais um Estado no sentido próprio da palavra", é um "semi-Estado".
A ditadura do proletariado é o Estado-Comuna formado pelos órgãos de poder direto das massas produtoras, e que combate a sua própria existência enquanto Estado, dissolvendo-se gradualmente. O avanço da transição socialista supera o direito burguês, superando o Estado, resquício burguês.
Por sua vez, é só por meio desses órgãos que pode haver o direcionamento do Partido Comunista. Sem o recurso do movimento "automático" da produção e reprodução do capital, da circulação de mercadorias e outras formas sociais da produção capitalista, o Partido Comunista precisa desses órgãos de poder direto das massas produtoras para sequer pensar no estabelecimento da planificação da economia. Esse Partido não pode receber a delegação de poder sob formas burguesas, sejam elas "ditatoriais" ou "democráticas". É por isso que o Partido Comunista não vai estar interessado em ser o realizador da falsa promessa burguesa de um Estado nacional e popular, mas em realizar o poder do proletariado, classe sem fronteiras e que quer o fim de si mesma enquanto classe.
Recomendo: Understanding “Labor Certificates” on the Basis of the Theory of Value ―The Law of Value and Socialism― (Tadayuki Tsushima, 1956)
Trabalho social direto e indireto: que espécie de relação humana pode transcender o capitalismo? (Peter Hudis)
“Marx, na Crítica ao programa de Gotha, diz que o socialismo é uma fase de transição do capitalismo ao comunismo. Diz abertamente que no período de transição irá existir o direito burguês e formas burguesas de repartição do trabalho. Diz ainda, numa passagem que acho complicada, que o ‘estreito horizonte do direito burguês’ só irá ser superado quando a riqueza social jorrar em abundância.
Desconheço em Marx, Engels e Lênin - para ficar nos três exemplos maiores - uma compreensão de socialismo não como fase de transição, mas sim uma negação absoluta de todas as formas, relações e estruturas sociais do capitalismo.
A ideia de que, por exemplo, se ainda tem ‘forma mercadoria’ ou ‘trabalho assalariado’ = não socialismo, parte de um conceito de socialismo que não é o de Marx e Lênin. E sem problemas usar um conceito que não seja o dos mestres. Mas é complicado tentar legitimar isso com apelo de ‘autoridade’ e ‘ortodoxia’.”
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