O apodrecimento dos Partidos Comunistas. Resposta a "Nossa prática e nossos princípios", da tribuna do PCB-RR
FMR; PCB-RR e sua relação com o KKE; LGBTfobia; esquerda comunista italiana; anarquismo, etc.
Retomando: a presente discussão começou por contribuições à tribuna do PCB-RR, primeiro no texto “O grande erro de Francisco Martins Rodrigues”, de Zenem Sanchez.
Esse texto recebeu algumas respostas: “Resposta ao camarada Zenem – Revolta Social, FMR e a ação dos Comunistas”, de Vasco da Silva, do Ruptura; e “O(s) Grande(s) Erro(s) de Zenem Sanchez – Uma resposta”, de Pedro Alcântara.
Por fim, até agora, uma tréplica foi enviada à tribuna: “Nossa prática e nossos princípios”, de Machado.
O alvo das críticas à FMR são dois dos seus textos: Três Doenças da Esquerda, segundo a ficha do marxists.org, uma “Palestra [de FMR] nas X Jornadas Independentistas Galegas decorridas em Compostela (Galiza) em 2006, organizadas pela organização comunista e independentista galega Primeira Linha”; e Acção Comunista em Tempo de Maré Baixa.
Os textos na tribuna do PCB-RR entram numa discussão sobre leninismo. O primeiro texto, “O grande erro de Francisco Martins Rodrigues”, diz: “Se por um lado FMR é um bom leninista quando vai rebater o social-liberalismo e o revisionismo, é um mal leninista quando vai pensar a práxis revolucionária em uma situação concreta.”
Já o “Nossa prática e nossos princípios” acusa FMR de reproduzir o “conformismo revolucionário”, que seria a postura na qual “somos pequenos porque somos revolucionários”, e que afastaria “uma autocrítica rigorosa da completa incapacidade de influenciar e dirigir a classe trabalhadora”.
Diz o texto:
”A meu ver, é um dos princípios do leninismo, provado e repisado na prática, de que, sem abdicar dos princípios do marxismo revolucionário, é possível e necessário construir um partido revolucionário capaz de organizar e dirigir amplas massas, inclusive fora de momentos revolucionários, e foi essa tarefa, a de construir um Partido revolucionário grande, forte e inserido na classe, que Lenin cumpriu durante os 15 anos de construção do Partido Bolchevique e defendeu durante toda sua atividade na Internacional Comunista”.
Bom, depois de ler isso, quem passar aos textos de Francisco Martins Rodrigues vai ter uma grande surpresa ao se deparar com a referência para suas posições. No Três Doenças da Esquerda, depois de reproduzir uma citação de Rosa Luxemburgo sobre a social-democracia (“Os social-democratas alemães tentam aplicar à revolução a sua sabedoria caseira: 'Para conseguir fazer alguma coisa, precisamos primeiro de ganhar a maioria'. Mas a dialéctica da revolução é oposta. O avanço não se faz da maioria para a táctica revolucionária, mas através da táctica revolucionária para a maioria”), FMR comenta:
”Grandes palavras estas, plenamente confirmadas pelo partido bolchevique russo! Considerado uma seita em Fevereiro de 1917 devido ao radicalismo das suas posições, oito meses depois conduzia milhões de trabalhadores à tomada do poder. Eu sei que foi há muitos anos, mas ainda não apareceu nenhuma experiência que desmentisse a justeza do leninismo.”
O que explica a discussão, se os dois lados têm a mesma referência política?
Machado fala contra uma “posição espontaneísta de desenvolvimento da consciência, que só seria possível no ‘momento correto’”, e sobre o “senso de urgência na construção partidária”, como uma tarefa “para agora, e não para o momento da próxima crise revolucionária”. A experiência leninista e do partido bolchevique mostraria que é possível e “necessário construir, o mais rápido possível, um Partido forte o suficiente para impactar a realidade (inclusive conquistando reformas), influenciar uma parcela significativa da classe trabalhadora e dirigi-la em direção à revolução”.
Francisco Martins Rodrigues diz:
“Com isto não quero dizer que devemos ficar na toca a escrever proclamações, à espera que chegue o dia da revolução. De modo nenhum. Só conservaremos a nossa identidade de revolucionários se interviermos diariamente na luta, com realismo, flexibilidade e abertura a outras correntes. É o que nós, da Política Operária, com a nossa pequenez, procuramos fazer.
Nesse caso, qual é a diferença que nos separa da outra esquerda? A diferença é que recusamos fazer política com os olhos nos votos e nos subsídios. Vemos nas reivindicações e acções diárias um meio de ajudar as massas a descobrir pela luta a sua razão e a sua força, um meio de cavar o antagonismo entre oprimidos e opressores — não um meio de ganhamos popularidade fácil e lugares nas instituições.
Gostemos ou não, somos uma fortaleza assediada, em tremenda desvantagem debaixo do fogo inimigo. Com conversa mole e panos quentes não iremos longe. A nossa única saída é falar claro, ser agressivos na denúncia do sistema, incutir desprezo pelo inimigo, porque só assim formaremos uma corrente combativa.
A seguir, entra no tipo de posicionamento que assusta as tribunas do PCB-RR (grifos meus): “Na situação contra-revolucionária como a que se vive hoje na Europa, um partido de esquerda não pode ser um partido de massas. Ou goza das vantagens de se instalar no sistema, ou sofre as consequências de ser revolucionário. As duas coisas juntas é que não pode ser. Somos uma força estranha ao sistema, que a burguesia procura invariavelmente eliminar — a tiro, como fazia no tempo do fascismo, ou a dinheiro, como faz agora. Amanhã, quando surgir uma situação revolucionária, então sim, a esquerda poderá e deverá crescer. Por agora é bom não entrarmos em pânico por sermos olhados como um partido ‘marginal’.”
A chave para resolver a polêmica é entender que FMR não está fazendo um ponto sobre tempo, mas sobre método. A posição de FMR não tem discordâncias com a temporalidade estabelecida por Machado: “não será possível só no ‘momento certo’”, “urgência”, “é para agora, não para depois”, “o mais rápido possível”, etc.
Se for possível construir, “o mais rápido possível”, a tal inserção e influência “em uma parcela significativa da classe trabalhadora”, “em direção à revolução”, a posição de FMR não apresenta nenhum contraste com isso, desde que essa inserção e influência se dê em acordo com os princípios estabelecidos na citação acima. E é aqui que podemos começar a entender a verdadeira discordância.
Basta se atentar ao alvo de FMR em Três Doenças da Esquerda, na seção específica “O medo de parecer uma seita”, que é o reformista Bloco de Esquerda, de Portugal:
“Na situação péssima a que a esquerda chegou, instalou-se a ideia de que o que interessa é falar daquilo que pode agradar à maioria, abandonar os temas difíceis ou demasiado ‘ideológicos’, não fazer figura de extremista, tornar-se uma espécie de comissão de melhoramentos.
Em Portugal, o Bloco de Esquerda lançou-se a aplicar essa receita e tem-se dado muito bem: em poucos anos, ganhou um grupo parlamentar, um deputado europeu e é citado como exemplo de ‘esquerda moderna’. Os meus antigos camaradas exultam porque já ninguém lhes chama ‘seita de iluminados’. ‘Sabendo crescer, mesmo à custa de algumas concessões, dizem eles, amanhã teremos força para aplicar um programa anticapitalista’.”
Na seção “O medo de parecer ‘ortodoxo’” - onde FMR comenta o medo de se demarcar de outras correntes de esquerda na defesa dos interesses e da independência de classe dos “assalariados de todo o tipo, operários, empregados, desempregados, precários, ‘donas de casa’” contra a burguesia e suas camadas pequeno-burguesas auxiliares de pequenos patrões, especialistas, etc. -, diz:
“Vejam este exemplo: em Portugal, na luta contra a guerra imperialista colaboramos com o PCP, sem dúvida a força mais à esquerda no leque partidário. Mas quando o PCP conduz os operários de uma grande fábrica à conciliação com o patronato, ou quando apresenta (como fez agora) uma proposta de lei para que sejam dadas mais verbas às forças de segurança — aí combatemo-lo sem contemplações. A defesa de uma política revolucionária não implica isolamento sistemático; exige sim uma participação independente em todas as acções em que haja interesses comuns. Como dizia Lenine, ‘atacar juntos, marchar separados’.”
A questão, portanto, é sobre método. Os comunistas têm um método de atuação política: intervenção nas reivindicações e ações diárias da classe trabalhadora, tendo em vista exercer uma influência em direção ao antagonismo contra a burguesia. Contribuir, com essa atuação, gradualmente, para uma consciência unitária do proletariado, onde diferentes setores trabalhadores superam a consciência setorial da sua categoria específica em torno de um programa comum de antagonismo contra o capital. Todas as manobras e acordos táticos, toda unidade de ação por parte de uma organização comunista com outras organizações, deve ser uma unidade de ação claramente definida e contingente, subordinada a esses objetivos finais e preservando a independência e demarcação política do programa proletário.
Poderíamos definir isso como uma discussão sobre o que é e como funciona a tática da “Frente Única”. A esquerda comunista italiana, difamada como “seita” e “esquerdista” por Machado, levanta uma discussão interessante sobre. Com o perdão das longas citações:
“Em 1921, quando foram emitidas as teses sobre a frente única, a questão da unidade foi concebida como aquela em que os comunistas procurariam estabelecer certos objetivos comuns com os partidos oportunistas, e depois revelariam os oportunistas como traidores quando não conseguissem assumir a luta à sua conclusão lógica. À medida que a maré da revolução retrocedia, foi visto como uma boa ideia - se nos permitem esticar uma analogia - atrelar a carroça do comunismo aos social-democratas e pegar uma carona até surgir a próxima onda revolucionária. Entendeu-se que a dedicação e o empenho dos partidos comunistas garantiriam que eles sairiam ideologicamente ilesos de tal manobra perigosa. O que isto deixou de lado, ou pelo menos não levou suficientemente a sério, foi que a Terceira Internacional, formada em 1919, era ela própria uma espécie de federação de partidos, pois apesar da aceitação dos 21 pontos como condição de adesão, muitos dos partidos, no entanto, incluíam fortes alas oportunistas. Isto significava que a própria Comintern foi uma frente única política altamente instável desde o início.”
(…) “«...A nossa oposição determinada ao lançamento de formulações genéricas e mal definidas não era de forma alguma obscura e «bizantina» mas eminentemente compreensível, e embora pudéssemos ver porque Lenin e Trotsky as defenderam, continuaríamos, no entanto, a afirmar que estas formulações prestaram-se - precisamente devido à sua imprecisão numa fase histórica que exigia directivas muito precisas - a interpretações muito ambíguas e, lamentavelmente, conciliadoras. Um exemplo típico disto é o slogan «conquistar a maioria da classe trabalhadora» como condição sine qua non para a tomada do poder. «É claro» - explicaria claramente Lenin - «não damos uma interpretação formal à conquista da maioria, como fazem os cavaleiros da 'democracia' filistina (...) Quando em Julho de 1921, em Roma, todo o proletariado - o proletariado reformista dos sindicatos e os centristas do partido de Serrati - seguiram os comunistas contra os fascistas, aquilo era conquistar a maioria da classe trabalhadora para o nosso lado (...). Fizeram-no apenas parcialmente, apenas temporariamente, apenas localmente. Mas foi conquista da maioria» (em «Uma carta aos comunistas alemães», 14 de agosto de 1921). Não surpreendentemente, porém, não demorou muito para que vários partidos, e mesmo correntes dentro do partido russo (causando repercussões na Internacional), interpretassem a «conquista da maioria» como significando algo completamente diferente - e entendessem que significava ou a a conquista material de uma maioria numérica através do recrutamento para o partido (contradizendo assim as teses fundamentais de 1920 sobre o papel do partido na revolução proletária), ou então a conquista, não da maior parte da classe trabalhadora, mas das «massas» entendidas num sentido genérico, organizadas ou não, proletárias ou «populares». Em suma, significaria, na mais generosa das hipóteses, uma fixação abstrata em níveis estatisticamente determináveis de influência direta (ou, pior ainda, de controle real) sobre as massas trabalhadoras; um nível que supostamente teria de ser alcançado antes que o equilíbrio de forças pudesse ser utilizado para lançar a batalha final. Ao sobrestimar a importância das maiorias simples, foram ignorados os factores que consistem - como na Rússia em 1917 - em um pequeno partido conseguir alcançar uma posição dominante durante uma fase crítica da luta, e agarrar corajosamente a oportunidade quando esta surgiu; um partido que, embora não fosse pequeno por opção, estava solidamente ancorado na consistência do programa e da ação dentro da classe trabalhadora. Um partido tem, portanto, todo o direito de exigir que um veredito sobre a eficácia da sua actividade não seja alcançado pelo padrão árido e académico do tamanho. Infelizmente, não demoraria muito para que o mau hábito de «julgar» os partidos com base no número de seus membros, ou com base nos maiores ou menores resultados obtidos nas eleições, se apoderasse da Internacional e, nessa base, as reuniões do Executivo Alargado da Internacional Comunista (ECCI) seriam transformadas em tribunais, o triste prelúdio da futura práxis Estaliniana»”.
(THE COMINTERN AND THE UNITED FRONT (1996), «Communist Left», n.10/11,)
“A fórmula que afirma que o partido deve ter as massas consigo nas vésperas da luta tornou-se agora uma fórmula tipicamente oportunista na interpretação superficial dos pseudo-leninistas de hoje quando afirmam que o partido deve em «todas as situações» ser um partido de massas. Existem situações objetivas em que o equilíbrio de forças é desfavorável à revolução (embora talvez mais próximo da revolução no tempo do que outras – o marxismo ensina-nos que a evolução histórica ocorre a ritmos muito diferentes), nestas situações, o desejo de ser o partido maioritário das massas e gozar de uma influência política dominante a todo custo, só pode ser alcançado nesses momentos renunciando aos princípios e métodos comunistas e engajando-se em vez disso na política social-democrata e pequeno-burguesa. Deve ser enfaticamente afirmado que em certas situações, passadas, presentes e futuras, o proletariado adotou, adota e inevitavelmente adotará uma postura não revolucionária – seja uma posição de inércia, ou de colaboração com o inimigo, conforme o caso – mas apesar de tudo, o proletariado, em todo lugar e sempre, continua a ser a classe potencialmente revolucionária encarregada do contra-ataque revolucionário; mas isto apenas na medida em que dentro dela existe o partido comunista e onde, sem nunca renunciar a intervenções coerentes quando apropriado, este partido evita tomar caminhos que, embora aparentemente sejam os caminhos mais fáceis para a popularidade instantânea, o desviariam da sua tarefa e, assim, removeriam o ponto de apoio essencial para garantir a recuperação do proletariado. Por motivos dialéticos e marxistas como estes (e nunca por motivos estéticos e sentimentais) rejeitamos a expressão bestial do oportunismo que afirma que um partido comunista é livre para adotar todos os meios e todos os métodos. Alguns dizem que precisamente porque o partido é verdadeiramente comunista, sólido em princípios e organização, pode entregar-se às mais acrobáticas manobras políticas, mas o que esta afirmação esquece é que o próprio partido é ao mesmo tempo fator e produto do desenvolvimento histórico, e o proletariado ainda mais maleável o é ainda mais. O proletariado não será influenciado pelas justificações distorcidas para tais «manobras» oferecidas pelos líderes do partido, mas pelos resultados reais, e o partido deve saber como antecipar estes resultados, principalmente usando a experiência de erros passados. Não é apenas através de credos teóricos e de sanções organizacionais que o partido estará garantido contra a degeneração, mas agindo correctamente no campo das táticas e fazendo um esforço determinado para bloquear caminhos falsos com normas de ação precisas e respeitadas”.
(Teses de Lyon (1926), Amadeo Bordiga, representando a fração de esquerda do Partido Comunista da Itália)
Uma crítica ao caráter oportunista que assumiu em geral as táticas da “Frente Única” e da “conquista da maioria” nos debates da Internacional Comunista também é feita por Francisco Martins Rodrigues, em O Malogro da Internacional Comunista (1993).
Não se trata, portanto, de “se resignar com a baixa inserção do partido nas massas”, de “se isolar e esperar as massas virem a nós nos tempo certo”. Tendo estabelecido com precisão, entendendo tudo que está em jogo, o método de atuação dos comunistas, a questão trazida por FMR é outra: se um partido comunista realiza a intervenção consequente na classe trabalhadora, com independência de classe e coerência entre programa e ação, mas ainda é minoritário, ainda não tem influência significativa, e a perspectiva da revolução proletária ainda está distante, como devemos entender isso?
Evidentemente, temos que reconhecer isso como um problema, e tentar resolvê-lo. Mas essa resolução passa invariavelmente pelo nosso método de atuação, e não pelo método não-comunista de “ser um partido de massas a todo custo”. O nosso método permite variações táticas de forma, não se trata de rejeitá-las, nem “se contentar com o que já estamos fazendo e esperar as massas”, mas as táticas devem respeitar o princípio do método, digamos assim: o princípio de que a intervenção comunista não pensa nas “massas” e no “crescimento” abstratamente, mas na eficácia da sua atividade. Essa eficácia não depende unicamente do tamanho, mas de vários fatores: análise concreta do desenvolvimento histórico, da sociedade em seus diferentes locais de atuação, das diferentes classes que compõem as “massas”, coerência entre programa, ação e propaganda. A atuação comunista pode ser eficaz em seu objetivo de demarcar um programa proletário entre a classe trabalhadora, mesmo que por um partido minoritário numericamente.
O caráter numérico minoritário não é um princípio. Já deve estar suficientemente martelado que não é esse ponto que o texto Três Doenças da Esquerda estabelece como princípio, mas o fato de que nosso método exige que saibamos passar por um período de menoridade numérica, analisando as possíveis causas, tentando remediá-lo sem entrar em pânico, sem adotar a “conversa mole e panos quentes”, e os “três medos”, denunciados por FMR.
O que se extrai de princípio da passagem sobre “um partido de esquerda não poder ser na situação contra-revolucionária atual da Europa um partido de massas” não é a menoridade, mas o saber passar pela situação de menoridade, por meio do entendimento de que o fator decisivo não é o tamanho, e sim fazer política sem “olhos nos votos e nos subsídios”, ver “nas reivindicações e acções diárias um meio de ajudar as massas a descobrir pela luta a sua razão e a sua força, um meio de cavar o antagonismo entre oprimidos e opressores — não um meio de ganhamos popularidade fácil e lugares nas instituições”, “falar claro, ser agressivos na denúncia do sistema, incutir desprezo pelo inimigo”.
Se o Partido Comunista souber passar por momentos de menoridade numérica em determinadas variações de conjuntura, é possível que consiga sustentar uma coerência que o permita retomar sua influência em momentos futuros, por meio da constatação por parte de setores da classe trabalhadora de que esse partido tinha as respostas corretas. Constatação que talvez ainda não fosse possível em conjunturas passadas, e que seria perdida se, na pressa de “chegar às massas”, o Partido Comunista tivesse perdido sua coerência.
Passemos então a tratar dos perigos do outro método, o do “partido de massas a todo custo”. Estes perigos estão bem exemplificados no próprio texto de Machado, na valorização do KKE: “os gregos nos provaram novamente e na atualidade que é possível, mantendo os princípios revolucionários, mantendo a propaganda pela tomada do poder político pela classe operária, construir um Partido expressivo na classe trabalhadora, capaz de sucessos eleitorais e de dirigir o movimento sindical e o movimento comunitário do país (entre outros) em uma perspectiva revolucionária”.
A discussão em torno da cisão do PCB-RR passou muito pelo tema do “crescimento sem qualidade” como algo marcante da atuação do velho PCB. A valorização do KKE, muito em voga entre os militantes do PCB-RR, no entanto, prova que essa discussão não atingiu a profundidade política necessária.
KKE é a sigla para Partido Comunista Grego. O interesse que alguns comunistas tem no KKE se dá pelo seu crescimento e inserção (que discutirei mais a frente), por ser um partido que denuncia o imperialismo chinês e russo, e que, ao contrário do velho PCB e do grosso do campo dos PCs, não entende o EIPCO (Encontro Internacional de Partidos Comunistas e Operários) como um campo pronto, em que os partidos devem evitar entrar em atritos uns com os outros em nome da "diplomacia" e do respeito à "autonomia de cada Partido Comunista em seu país". Dessa forma, o KKE defende a polêmica pública entre partidos e busca criticar abertamente o nacional-reformismo de vários PCs.
O KKE, no entanto, é extremamente anti-LGBT. Temos que reconhecer que houveram contribuições às tribunas do PCB-RR que fizeram as críticas necessárias e abertas às posições do KKE nesse ponto, como no texto “'Depois da tempestade, haverá um arco-íris?: para uma crítica da LGBTfobia no Movimento Comunista Internacional’”, de Mendes e Sagaranam, e em um texto de antes, “A questão LGBT e as divergências no Movimento Comunista Internacional”, de Gabriel Landi, que viria a fazer parte do PCB-RR e que fez questão de discutir nesse ponto com Ivan Pinheiro, um dos que encabeçou a cisão à esquerda, inclusive citando um texto desse blog, publicado no LavraPalavra.
Conflitos com anarquistas são outro problema. O KKE é um partido que, na Grécia, parte para o confronto aberto com anarquistas, e tem uma postura tão ridícula nessa questão que um artigo do próprio partido mostra seus alinhamentos problemáticos: numa manifestação organizada pelo PAME (organização sindical do KKE), na Praça Syntagma, alguns manifestantes queriam invadir o parlamento (onde estava ocorrendo votação de medidas de austeridade), jogaram coquetéis molotov, etc.
O KKE entende essas ações como partindo de “anarco-fascistas”, que queriam “dispersar” a “majestosa manifestação organizada pelo PAME contra as medidas anti-povo do governo”. Falam de um sindicalista morto nessa manifestação: Dimitris Kotzaridis. Algumas fontes dizem que ele morreu inalando o gás lacrimogênio da polícia. O KKE, não obstante, acusa os “anarco-fascistas” por sua morte, sem explicar como, provavelmente pela “culpa” associada de “causar caos”.
Diz o KKE: "na Grécia é sabido que esses grupos que aparecem sob a capa da cor preta, do capuz, do ‘anarquismo’ são organizados e administrados pelas forças do sistema burguês e incluem desde hooligans organizados de times de futebol, bandidos contratados de boates, membros de organizações neonazistas e forças de serviços de segurança."
Havia uma polêmica sobre o KKE ter protegido ou não o parlamento contra os ataques de ação direta. Eis que o KKE, no mesmo parágrafo em que paradoxalmente classifica isso como "calúnia suja", nos confirma:
"Esta calúnia de que o PAME alegadamente ‘protegia o parlamento burguês dos rebeldes’ nada tem a ver com a realidade e, além disso, procura esconder a verdade, nomeadamente o fato de a PAME ter conseguido, GRAÇAS À SUA FORTE VIGILÂNCIA, defender a manifestação e impedir os planos para sua dissolução" (grifos meus).
Só podemos concluir: se uma organização se deixa infectar pela ideia de que as ações diretas dos anarquistas são “tentativas de estragar nossas manifestações”, e portanto há a necessidade de “proteger” a manifestação dos anarquistas, a organização passa a tomar posições e atitudes inaceitáveis, tão irresponsáveis quanto o que alega criticar. Afinal, pra começo de conversa, sair “protegendo” a manifestação com as próprias mãos fomenta tanto conflito, fomenta tantas “respostas da polícia” quanto o que é alegado sobre a ação direta anarquista. Se podem haver “infiltrados visando incitar a repressão da polícia”, a atitude de ficar entrando em conflito, ou pior, entregando militantes pra polícia, também incita e beneficia a repressão.
Comunistas e anarquistas podem ter discordâncias sobre a forma de operacionalizar a ação direta em manifestações de rua. Mas esse debate é severamente deturpado com frequência.
Aqui no Brasil, temos o exemplo dessa lógica no MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), que já usou o apelo da "segurança dos atos", e de "decidir em assembléia o que vai ser feito na manifestação", para defender seus bate-paus agredindo anarquistas e entregando-os pra polícia. Também é a lógica que informa o PCdoB tentando proteger o Carrefour no protesto pelo assassinato do João Alberto Silveira Freitas (Beto) pelos seguranças do supermercado. É uma deturpação do debate, já que ninguém vai dizer abertamente, caricaturalmente, "queremos um protesto ordeiro para nossos interesses reformistas". O apelo discursivo vai ser a "segurança dos atos", "agir contra infiltrados" e coisas do tipo.
Não quero dizer que não podemos debater sobre táticas que não consideremos corretas para determinado momento. Mas comunistas não podem partir disso para absorver a lógica de tomar para si a "segurança dos atos" e começar a agir na rua contra anarquistas e outros que façam ação direta. Isso não é nada mais que a infiltração de ideias das organizações social-democratas sobre como conduzir os atos de rua.
Nós que não fazemos parte do PCB-RR, ou da tradição onde ele se insere, podemos reconhecer que essa cisão à esquerda do PCB é positiva, pois busca uma autocrítica da história do PCB, e é mais uma expressão na esquerda de demarcação frente ao reformismo petista, do PCdoB, do PSOL, etc. Mas não se pode deixar de dizer a verdade. Não é da tradição onde o PCB-RR busca se inserir que vai sair um programa comunista renovado. Se a referência política do PCB-RR é o KKE, a tendência é se tornar mais uma gangue apodrecida, como tantas outras. Os adeptos das ideias de FMR e da Política Operária, ou da esquerda comunista italiana, que estão no PCB-RR, se iludem.
O KKE se insere na tendência descrita por Francisco Martins Rodrigues em 1989, nas Novas Lições da Revolução Russa (Elementos para uma plataforma comunista) (III): “Com a nova etapa de integração plena dos regimes de capitalismo de Estado no mercado capitalista mundial entram em bancarrota as correntes que nas últimas décadas falavam em nome do marxismo. Revisionistas, stalinistas, maoístas, trotskistas debatem-se em contradições insolúveis à medida que as suas teorias caem pela base. E, embora o processo da sua decomposição se arraste provavelmente por vários anos, é inevitável.”
O apodrecimento dos Partidos Comunistas é um fenômeno notável, e nos ajuda a repensar nossas noções de “inserção na classe trabalhadora”. O que é o PCdoB, no Brasil, se não um partido com “inserção” em diversos “órgãos da classe trabalhadora”? O que é o PCP, em Portugal?
Claro, o principal da tese é que o KKE estaria conseguindo essa inserção “mantendo os princípios revolucionários, mantendo a propaganda pela tomada do poder político pela classe operária, a perspectiva revolucionária”. Mas quantos Partidos Comunistas não tomaram esse caminho inicialmente, para depois apodrecerem cada vez mais em revisionismo, reformismo e adequação à ordem? Se já vimos esse processo se repetir tantas vezes, podemos nos dar ao luxo de “deixar pra lá” os problemas aparentes, classificando-os como meras “contradições”, e nos iludir com os períodos de “ascenso” dessas organizações degradadas, em sua aparência de vigor e “firmeza de princípios”?
O quão apodrecidos estamos, enquanto comunistas, discutindo a “inserção na classe trabalhadora” de uma organização que, enlameando o nome do comunismo, do horizonte histórico que dizemos defender, ataca casais homossexuais que adotam crianças, e pessoas trans que enfrentam uma transfobia social doentia? Que exerce orgulhosamente, como uma verdadeira gangue, uma “forte vigilância” em defesa do parlamento burguês contra os “anarco-fascistas” [sic]?
Estes exemplos nos mostram que não devemos valorizar a “inserção na classe trabalhadora” abstrata, concepção que é mais uma herança da degradação passada do movimento comunista. O Partido Comunista não se constitui quando se “insere” no proletariado, mas quando serve de impulso à própria constituição do proletariado enquanto classe. O proletariado em sua existência imediata se encontra fragmentado em diferentes categorias e grupos sociais, e só se constitui realmente quando as lutas concretas vão superando seu caráter parcial em favor de um programa de classe, de uma ação coletiva em que o proletariado então age como classe, em direção ao seu projeto histórico de uma sociedade sem classes. O Partido Formal é um instrumento do Partido Histórico, não um fim em si mesmo.
Essa é a importância do programa comunista. Não pode ser secundário, portanto, que o KKE seja anti-LGBT. Justamente porque a questão da atuação comunista não se refere à mera “inserção”, que permitiria secundarizar essa “contradição” (“O KKE avança a perspectiva revolucionária a despeito de suas contradições”). Ao ser anti-LGBT, o KKE atrasa e se põe contrário à constituição do proletariado, enquanto classe com ação e programa de antagonismo conjunto contra o capital. A LGBTfobia é uma forma de conciliação de classe, como tentei sustentar em textos anteriores desse blog.
A posição anti-LGBT não absorve as lições históricas da importância que teve o refortalecimento da instituição da família na consolidação do capitalismo de estado, da derrota que representou o abandono da posição comunista de abolição da família, e é uma conciliação do Partido Comunista com a sociedade burguesa, com a família e o “trabalhador” imediato. Ao conciliar com este último, eterno cortejado de honra dos Partidos Comunistas, dilui a divisão entre a classe trabalhadora heterossexual e cisgênera e a classe trabalhadora LGBT, em favor da primeira, “muito mais importante” (Afinal, existe mesmo essa classe trabalhadora LGBT?! Não são todos pequeno-burgueses?). O Partido Comunista se afasta da questão LGBT para não “afastar” o “trabalhador” imediato.
Se afastando de questões que julga que “dividem a classe trabalhadora”, perpetua exatamente a sua divisão, já que não existe resolução comunista das divisões da classe trabalhadora por meio da conciliação ou afirmação da opressão, mas unicamente por meio do seu combate. O proletário fragmentado não afirma seu programa histórico; fragmentado, se enfraquece politicamente, fortalecendo sua submissão às burocracias e “intelectualidades” partidárias, pelegagem sindical, projetos “populares” pseudo-radicais diversos (ou seja, o Partido Comunista concilia com estes em nome do “trabalhador”). O proletário fragmentado ataca as LGBTs marginalizadas, seja na sua própria família ou na rua, em nome da sua integração ordeira na sociedade burguesa, sendo instrumento tanto da marginalização quanto de barreira à organização política desse setor do proletariado. Em suma, o proletariado afirma sua posição enquanto proletariado no capitalismo, ao invés de buscar o fim de si mesmo enquanto classe. O Partido Comunista sanciona.
Tudo isso se conecta com o terceiro “medo” denunciado por Francisco Martins Rodrigues: o medo de ajustar contas com o passado. O KKE se insere na tradição dos PCs revisionistas alinhados à oficialidade “comunista”, à União Soviética, que é a tradição do próprio PCB. As autocríticas da “esquerda” desse campo de PCs talvez sejam respostas desesperadas ao seu descrédito histórico. Se veem obrigados a reavaliar pelo menos algumas posições, para continuar cooptando a base mais “radical”. Mas não podemos, com a desculpa do anti-stalinismo e do “anti-marxismo-leninismo” direitista, social-democrata de parte da ala oportunista do velho PCB, desculpar o stalinismo do KKE, sua valorização acrítica da atuação internacional do Exército Vermelho, etc.
Desde o Anti-Dimitrov, FMR se demarcou do stalinismo em sua crítica ao dimitrovismo, de modo que sua crítica fica incompleta sem essa demarcação. Talvez porque, desde sempre, FMR e sua organização, Política Operária, tinham conhecimento do fato de que a crítica ao dimitrovismo, presente em algumas organizações oriundas do campo ML de inspiração hoxhaísta, se apresentava eventualmente com reservas a tocar na questão do stalinismo. Isso fica evidente no debate da Política Operária com o Marxist-Leninist Party, nos anos 80. A crítica que o KKE faz ao 7º Congresso da IC, à dissolução da IC, entre outras, sem romper com o stalinismo, e buscando preservar uma certa “oposição” entre a “firmeza” stalinista e esses momentos da IC, não é sequer novidade.
A denúncia social-democrata da União Soviética e de Stalin em favor das “democracias” capitalistas e ocidentais deve ser desmistificada, junto com o anti-stalinismo reformista que concilia com ela. Esse debate certamente não está encerrado, e ainda é necessário insistir muito nele. A única crítica ao stalinismo é a crítica comunista. Mas não podemos ficar presos na rejeição e no defensismo, precisamos de propostas novas em termos de programa. Como diz FMR em Três Doenças da Esquerda:
“(…) Falta-nos explicar, pelo menos, duas coisas:
1. o que será essa sociedade socialista de que falamos, sem patrões, sem mercado, sem concorrência, sem guerras;
2. como conseguiremos reunir forças para lá chegar, isto é, como seremos capazes de desmantelar o Estado burguês e expropriar a burguesia. Por não saber explicar nem uma coisa nem a outra, a esquerda atravessa um longo período de crise, de isolamento, de cisões e de reconstrução.”
Nenhuma organização comunista, ou anarquista, ou de qualquer outra corrente, em parte alguma do mundo, tem a “inserção” necessária para dizer que sabe os rumos da revolução proletária. Temos exemplos pontuais, de resistência, experiências interessantes de organização e “inserção”, guerrilhas revolucionárias que podem ser um embrião, mas não existe em lugar algum uma organização proletária enquanto constituição histórica do proletariado em determinado local, agindo como conjunto em torno do seu projeto de sociedade sem classes.
Desse modo, as mais variadas correntes interessadas na perspectiva revolucionária e no combate ao reformismo devem rediscutir a história e o programa proletário, com honestidade e sem sectarismo, para contribuir à construção de um programa renovado que possa dar resposta às questões atuais. O medo de ajustar contas com o passado (não confundir com deixar de aprender com as lições do passado, combater a propaganda burguesa sobre o passado) é um entrave a isso, e é um agravante quando esse medo impulsiona a degradação reacionária.
Não tem a ver com deixar de estudar contribuições do KKE. Pode-se manter contato com o KKE? Na verdade, resta saber é se o KKE aceitaria manter contato com quem lhe dissesse a verdade: que sua defesa da opressão anti-LGBT e hostilização aos anarquistas são formas de conciliação com a sociedade burguesa e com sua tradição de PC revisionista alinhado ao capitalismo de estado, que impedem que essa organização cumpra seu objetivo auto-declarado de se inserir no campo revolucionário, e de fazer parte do campo que quer contribuir para a constituição do Partido Histórico do proletariado.