Minha Desilusão na Rússia (Posfácio) - Emma Goldman (1925)
Traduzido do original em inglês. Quando li esse texto, pensei que com certeza ele estaria traduzido em vários sites, mas não encontrei em lugar nenhum, então decidi traduzir. Mesmo os pdfs por aí são dos capítulos anteriores e não chegam ao posfácio. Não sei se tem a ver com o fato de que por um erro da editora a primeira edição do livro, de 1923, foi lançada com os capítulos finais (e o posfácio) faltando. Para o desânimo da autora, que disse no prefácio do segundo volume da edição americana de 1925 (onde o erro foi corrigido) que o posfácio era sua “parte mais vital”. O livro tem uma edição em português à venda.
Não é absolutamente necessário ler os capítulos anteriores pra entender o posfácio. Recomendo-os muito, mas eles são um relato da experiência da autora na Rússia, enquanto o posfácio é uma discussão mais teórica e abrangente. Talvez ler os capítulos anteriores tirasse da cabeça do leitor a imagem que se pode ter de que ela já era “desiludida” com a Rússia desde o início, por ser anarquista. Na verdade, Emma Goldman apoiava e tinha grandes esperanças na Revolução Russa. Como diz a introdução de Rebecca West (1925):
“(…) seu Anarquismo a predispunha a admirar a nova Rússia, porque ela tinha o mérito (e você pode perceber pelo posfácio deste volume a força que tem para ela esse mérito) de ter sido criada por uma Revolução, o que para sua fé Anarquista era per se uma coisa sagrada. Não há dúvida de que toda a sua inclinação temperamental era favorável a aprovar o Governo Bolchevique, e que somente o contato com uma realidade extremamente desagradável poderia tê-la desiludido."
EMMA GOLDMAN, Minha Desilusão na Rússia (1925) - Posfácio
OS CRÍTICOS socialistas não-bolcheviques do fracasso russo argumentam que a Revolução não poderia ter tido sucesso na Rússia porque as condições industriais não haviam atingido o clímax necessário naquele país. Referem-se a Marx, que ensinou que uma revolução social só é possível em países com um sistema industrial altamente desenvolvido e seus correspondentes antagonismos sociais. Afirmam, portanto, que a Revolução Russa não poderia ter sido uma revolução social, e que historicamente ela tinha de evoluir segundo linhas constitucionais, democráticas, complementadas por uma indústria crescente, a fim de amadurecer o país economicamente para a transformação básica.
Essa visão Marxiana ortodoxa deixa de lado um fator importante—um fator talvez mais vital para a probabilidade e o sucesso de uma revolução social que até mesmo o elemento industrial. Trata-se da psicologia das massas em um determinado período. Por que não há, por exemplo, nenhuma revolução social nos Estados Unidos, na França ou mesmo na Alemanha? Certamente esses países atingiram o desenvolvimento industrial estabelecido por Marx como o estágio culminante. A verdade é que o desenvolvimento industrial e os contrastes sociais acentuados não são por si mesmos, de modo algum, suficientes para dar luz a uma nova sociedade ou para invocar uma revolução social. A necessária consciência social, a psicologia de massa indispensável está em falta em tais países como os Estados Unidos e os outros mencionados. Isso explica por que nenhuma revolução social ocorreu ali.
Nesse aspecto, a Rússia tinha a vantagem de outras terras mais industrializadas e "civilizadas". É verdade que a Rússia não era tão avançada industrialmente quanto seus vizinhos ocidentais. Mas a psicologia da massa russa, inspirada e intensificada pela Revolução de Fevereiro, estava amadurecendo em um ritmo tão rápido que, em poucos meses, o povo estava pronto para slogans tão ultra-revolucionários como "Todo o poder aos Sovietes" e "A terra aos camponeses, as fábricas aos trabalhadores".
O significado de tais slogans não deve ser subestimado. Expressando em grande parte a vontade instintiva e semi-consciente do povo, representaram ainda a completa reorganização social, econômica e industrial da Rússia. Que país na Europa ou na América está preparado para traduzir lemas tão revolucionários em realidade? No entanto na Rússia, nos meses de Junho e Julho, 1917, esses slogans se tornaram populares e foram adotados com entusiasmo e ativamente, na forma de ação direta, pelo grosso da população industrial e agrária de mais de 150 milhões. Isso foi prova suficiente da "maturidade" do povo russo para a revolução social.
Quanto à "preparação” econômica no sentido Marxiano, não deve ser esquecido que a Rússia é, predominantemente, um país agrário. A máxima de Marx pressupõe a industrialização da população camponesa e rural em toda sociedade altamente desenvolvida, como um passo em direção à aptidão social para a revolução. Contudo os eventos na Rússia, em 1917, demonstraram que a revolução não aguarda esse processo de industrialização e — o que é mais importante — não pode ser feita aguardar. Os camponeses russos começaram a expropriar os latifundiários e os trabalhadores tomaram posse das fábricas sem tomar nota dos ditados Marxianos. Essa ação popular, em virtude de sua própria lógica, inaugurou a revolução social na Rússia, perturbando todos os cálculos Marxianos. A psicologia do Eslavo provou-se mais forte que as teorias social-democratas.
Essa psicologia envolvia o anseio apaixonado por liberdade nutrido por um século de agitação revolucionária no seio de todas as classes da sociedade. O povo russo felizmente permaneceu politicamente pouco sofisticado, intocado pela corrupção e confusão criadas entre o proletariado de outros países pela liberdade e autogoverno “democráticos”. O Russo permaneceu, nesse sentido, natural e simples, não familiarizado com as sutilezas da política, das manobras parlamentares e artimanhas legais. Por outro lado, seu senso primitivo de justiça e direito era forte e vital, sem a finesse desintegradora da pseudo-civilização. Ele sabia o que queria, e não esperou que a "inevitabilidade histórica" o trouxesse: ele empregou a ação direta. A Revolução era para ele um fato da vida, não uma mera teoria para discussão.
Assim a revolução social ocorreu na Rússia, apesar do atraso industrial do país. Mas fazer a Revolução não era suficiente. Era necessário que ela avançasse e se ampliasse, desenvolvendo-se no sentido da reconstrução econômica e social. Essa fase da Revolução exigia o pleno exercício da iniciativa pessoal e do esforço coletivo. O desenvolvimento e o sucesso da Revolução dependiam do mais amplo exercício do gênio criativo do povo, da cooperação do proletariado intelectual e manual. Interesse comum é o leit motif de todo esforço revolucionário, especialmente do seu aspecto construtivo. Esse espírito de mútuo propósito e solidariedade varreu a Rússia com uma onda poderosa nos primeiros dias da Revolução de Outubro-Novembro. Inerentes a esse entusiasmo estavam forças que poderiam ter movido montanhas se inteligentemente guiadas por uma consideração exclusiva pelo bem estar de todo o povo. O meio para essa orientação eficaz estava à disposição: as organizações de trabalhadores e as cooperativas com as quais a Rússia estava coberta como uma rede de pontes conectando a cidade ao campo; os Sovietes que surgiram em resposta às necessidades do povo russo; e, finalmente, a intelligentsia cujas tradições de um século expressavam heroísmo e devoção à causa da emancipação da Rússia.
Mas tal desenvolvimento não figurava de forma alguma no programa dos Bolcheviques. Por vários meses após outubro, eles permitiram que as forças populares se manifestassem, o povo carregando a Revolução para canais sempre mais amplos. Mas tão cedo o Partido Comunista sentiu-se suficientemente forte na sela do governo, começou a limitar o escopo da atuação popular. Todos os atos subsequentes dos Bolcheviques, todas as suas políticas seguintes, mudanças de políticas, seus compromissos e recuos, seus métodos de supressão e perseguição, seu terrorismo e extermínio de todas as outras visões políticas — não eram senão meios para um fim: a retenção do poder do Estado nas mãos do Partido Comunista. De fato, os próprios Bolcheviques (na Rússia) não fizeram segredo disso. O Partido Comunista, argumentavam, é a vanguarda do proletariado, e a ditadura deve repousar em suas mãos. Infelizmente, os bolcheviques não contavam com o seu anfitrião — com o campesinato, a quem nem a razvyoriska, a Tcheka, nem o fuzilamento em massa puderam persuadir a apoiar o regime Bolchevique. O campesinato se tornou a rocha contra a qual os melhores planejamentos e esquemas de Lenin naufragaram. Mas Lenin, um ágil acrobata, era habilidoso em atuar dentro da mais estreita margem. A nova política econômica foi introduzida bem a tempo de afastar o desastre que estava lentamente, mas seguramente, tomando conta de toda a construção Comunista.
II
A "nova política econômica" chegou como uma surpresa e um choque para a maioria dos Comunistas. Eles viram nela uma reversão de tudo que o seu Partido vinha proclamando — uma reversão do próprio comunismo. Em protesto alguns dos membros mais antigos do Partido, homens que haviam enfrentado perigo e perseguição sob o antigo regime enquanto Lenin e Trotsky viviam no exterior em segurança, deixaram o Partido Comunista, amargurados e decepcionados. Os líderes então declararam uma paralisação. Eles ordenaram a limpeza das fileiras do Partido de todos os elementos descrentes. Todos os suspeitos de uma atitude independente e aqueles que não aceitaram a nova política econômica como a última palavra na sabedoria revolucionária foram expulsos. Entre eles estavam comunistas que, por anos, haviam prestado o mais devoto serviço. Alguns, profundamente feridos pelo procedimento injusto e brutal, e abalados até o fundo pelo colapso daquilo que lhes era mais sagrado, recorreram até ao suicídio. Mas os bons ventos do novo evangelho de Lenin tinham de ser garantidos, o evangelho da santidade da propriedade privada e da liberdade de competição feroz erigido sobre as ruínas de quatro anos de revolução.
No entanto, a indignação Comunista com a nova política econômica meramente indicava a confusão na mente dos opositores de Lenin. O que mais senão a confusão mental poderia aceitar as inúmeras acrobacias políticas de Lenin e, ainda assim, ficar indignado com o último salto mortal, sua culminação lógica? O problema com os Comunistas devotos era que eles se agarravam à Imaculada Concepção do Estado Comunista, que, com a ajuda da Revolução, iria redimir o mundo. Mas a maioria dos principais Comunistas nunca entreteve tal ilusão. Muito menos Lenin.
Durante minha primeira entrevista tive a impressão de que ele era um político astuto que sabia exatamente o que estava fazendo e que ele não pararia diante de nada para atingir seus objetivos. Depois de ouvi-lo falar em diversas ocasiões e ler suas obras eu fiquei convencida de que Lenin tinha muito pouca preocupação com a Revolução e que o Comunismo para ele era uma coisa muito remota. O Estado político centralizado era a divindade de Lenin, para a qual tudo o mais deveria ser sacrificado. Alguém disse que Lenin sacrificaria a Revolução para salvar a Rússia. As políticas de Lenin no entanto provaram que ele estava disposto a sacrificar tanto a Revolução quanto o país, ou pelo menos parte deste, para realizar seu esquema político com o que restasse da Rússia.
Lenin foi o político mais flexível da história. Ele podia ser ultra-revolucionário, conciliador e conservador ao mesmo tempo. Quando, como uma onda poderosa, o grito "Todo o poder aos Sovietes!" varreu a Rússia, Lenin nadou com a maré. Quando os camponeses tomaram posse da terra e os operários das fábricas, Lenin não só aprovou esses métodos diretos, como foi mais longe. Ele lançou o famoso lema "Roubem quem rouba", um slogan que serviu para confundir as mentes do povo e que causou um dano incalculável ao idealismo revolucionário. Nunca antes qualquer verdadeiro revolucionário havia interpretado expropriação social como a transferência de riqueza de um grupo de indivíduos para outro. Porém foi exatamente isso que o lema de Lenin queria dizer. Os ataques indiscriminados e irresponsáveis, a acumulação da riqueza da antiga burguesia pela nova burocracia Soviética, a chicana praticada contra aqueles cujo único crime era seu status anterior, foram todos resultados da política de "Roubem quem rouba" de Lenin. Toda a história subsequente da Revolução é um caleidoscópio dos compromissos e traições de Lenin aos seus próprios slogans.
Os atos e métodos bolcheviques desde os dias de Outubro podem parecer contradizer a nova política econômica. Mas na realidade são elos da cadeia que viria a forjar um Governo todo-poderoso e centralizado, com o Capitalismo de Estado como sua expressão econômica. Lenin possuía clareza de visão e vontade de ferro. Ele sabia como fazer seus camaradas na Rússia e fora dela acreditarem que seu esquema era o verdadeiro Socialismo, e seus métodos a revolução. Não é de se admirar que Lenin sentisse tanto desdém por seu rebanho, o qual nunca hesitou em jogar nas suas caras. "Somente tolos podem acreditar que o Comunismo seja possível na Rússia agora", foi a resposta de Lenin aos opositores da nova política econômica.
Na verdade, Lenin estava certo. O verdadeiro Comunismo nunca foi tentado na Rússia, a menos que alguém considere trinta e três categorias de pagamento, diferentes rações alimentares, privilégios a alguns e indiferença à grande massa como Comunismo.
No período inicial da Revolução foi relativamente fácil para o Partido Comunista tomar o poder para si. Todos os elementos revolucionários, deixando-se levar pelas promessas ultra-revolucionárias dos Bolcheviques, ajudaram os últimos a alcançar o poder. Uma vez em posse do Estado, os Comunistas começaram o seu processo de eliminação. Todos os partidos e grupos políticos que se recusassem a se submeter à nova ditadura tinham que ir embora. Primeiro os Anarquistas e os Social Revolucionários de Esquerda, depois os Mencheviques e outros opositores da Direita, e finalmente todos que ousavam aspirar à sua própria opinião. Similar foi o destino de todas as organizações independentes. Ou elas foram subordinadas às necessidades do novo Estado ou destruídas completamente, como ocorreu com os Sovietes, os sindicatos e as cooperativas — os três grandes fatores da realização das esperanças da Revolução.
Os Sovietes se manifestaram pela primeira vez na revolução de 1905. Desempenharam um papel importante durante aquele breve mas significativo período. Embora a revolução tenha sido esmagada, a ideia Soviética permaneceu enraizada nas mentes e corações das massas russas. Ao primeiro alvorecer que iluminou a Rússia em Fevereiro, 1917, os Sovietes reviveram novamente e floresceram em um tempo muito curto. Para o povo os Sovietes de forma alguma representavam um cerceamento do espírito da Revolução. Pelo contrário, a Revolução viria a encontrar sua expressão prática mais alta e mais livre por meio dos Sovietes.
Foi por isso que os Sovietes tão espontânea e rapidamente se espalharam por toda a Rússia. Os Bolcheviques perceberam a relevância dessa febre popular e uniram-se ao clamor. Mas uma vez no controle do Governo, os Comunistas viram que os Sovietes ameaçavam a supremacia do Estado. Ao mesmo tempo, não podiam destruí-los arbitrariamente sem minar seu próprio prestígio em casa e no exterior como patrocinadores do sistema Soviético. Eles começaram a gradualmente reduzir os seus poderes e, finalmente, a subordina-los às suas próprias necessidades.
Os sindicatos russos foram muito mais suscetíveis à emasculação. Numericamente e em termos de fibra revolucionária, ainda estavam em sua infância. Declarando a adesão aos sindicatos obrigatória, as organizações russas de trabalhadores ganharam em estatura física, mas mentalmente permaneceram no estágio infantil. O Estado comunista tornou-se a ama-de-leite dos sindicatos. Em troca, as organizações serviram como lacaios do Estado. "Escolas para o Comunismo", disse Lenin na famosa polêmica sobre as funções dos sindicatos. Muito bem. Mas uma escola antiquada onde o espírito da criança é amarrado e esmagado. Em nenhum lugar do mundo as organizações de trabalhadores são tão subservientes à vontade e aos ditames do Estado quanto são na Rússia Bolchevique.
O destino das cooperativas é muito bem conhecido para precisar de elucidação. As cooperativas eram o elo mais essencial entre a cidade e o campo. Seu valor para a Revolução como um meio de troca e distribuição popular e efetivo e para a reconstrução da Rússia era incalculável. Os Bolcheviques transformaram-nas em engrenagens da máquina do Governo, e assim destruíram sua utilidade e eficiência.
III
Agora está claro por que a Revolução Russa, conforme conduzida pelo Partido Comunista, foi um fracasso. O poder político do Partido, organizado e centralizado no Estado, buscou manter-se por todos os meios disponíveis. As autoridades centrais tentaram forçar as atividades do povo em formas correspondentes aos objetivos do Partido. O único objetivo deste último era fortalecer o Estado e monopolizar todas as atividades econômicas, políticas e sociais — até mesmo todas as manifestações culturais. A Revolução tinha um objetivo completamente diferente, e em seu próprio caráter ela era a negação da autoridade e da centralização. Ela buscou abrir cada vez mais espaço para a expressão proletária e multiplicar as instâncias de esforço individual e coletivo. Os fins e tendências da Revolução eram diametralmente opostos aos do partido político governante.
Tanto quanto eram diametralmente opostos os métodos da Revolução e do Estado. Os daquela eram inspirados pelo espírito da Revolução mesma: isto é, pela emancipação de todas as forças opressivas e limitantes; em resumo, por princípios libertários. Os métodos do Estado, ao contrário — do Estado Bolchevique como de todo governo — eram baseados na coerção, que como de costume evoluía necessariamente para violência sistemática, opressão, e terrorismo. Assim duas tendências opostas lutaram pela supremacia: o Estado Bolchevique contra a Revolução. Essa luta era uma luta de vida ou morte. As duas tendências, contraditórias em objetivos e métodos, não podiam trabalhar harmoniosamente: o triunfo do Estado significava a derrota da Revolução.
Seria um erro supor que o fracasso da Revolução teria se dado inteiramente pelo caráter dos Bolcheviques. Fundamentalmente, ele foi o resultado dos princípios e métodos do Bolchevismo. Foi o espírito autoritário e os princípios do Estado que sufocaram as aspirações libertárias e libertadoras. Estivesse outro partido político no controle do governo na Rússia, o resultado teria sido essencialmente o mesmo. Não foram os Bolcheviques que mataram a Revolução Russa, mas a ideia Bolchevique. Foi o Marxismo, embora modificado; em suma, o fanatismo governamental. Apenas essa compreensão das forças profundas que esmagaram a Revolução pode apresentar a verdadeira lição daquele evento que abalou o mundo. A Revolução Russa reflete em pequena escala a luta centenária do princípio libertário contra o autoritário. Pois o que é progresso senão maior aceitação geral dos princípios da liberdade em oposição àqueles da coerção? A Revolução Russa foi um passo libertário derrotado pelo Estado Bolchevique, pela vitória temporária do reacionário, da ideia governamental.
Essa vitória se deu por uma série de causas. A maioria delas já foi tratada nos capítulos precedentes. A principal causa, no entanto, não foi o atraso industrial da Rússia, como reivindicam muitos escritores sobre o assunto. A causa foi cultural, o que, embora tenha dado ao povo russo certas vantagens em relação a seus vizinhos mais sofisticados, também teve algumas desvantagens fatais. O Russo era "culturalmente atrasado" no sentido de estar preservado da corrupção política e parlamentar. Por outro lado, essa mesma condição envolvia inexperiência no jogo político e uma fé ingênua no poder miraculoso do partido que falasse mais alto e fizesse mais promessas. Essa fé no poder do governo serviu para escravizar o povo russo ao Partido Comunista mesmo antes que as grandes massas percebessem que o jugo já havia sido colocado ao redor de seus pescoços.
O princípio libertário foi forte nos dias iniciais da Revolução, a sede de expressão livre, fervorosa. Mas quando a primeira onda de entusiasmo retrocedeu à maré baixa da prosaica vida cotidiana, uma convicção firme era necessária para manter as chamas da liberdade acesas. Havia apenas um relativo pequeno grupo na grande vastidão da Rússia para manter aquelas chamas — os Anarquistas, cujo número era pequeno e cujos esforços, absolutamente suprimidos sob o Czar, não haviam tido tempo de gerar frutos. O povo russo, em certa medida Anarquistas instintivos, ainda estava muito pouco familiarizado com os verdadeiros princípios e métodos libertários para aplicá-los efetivamente à vida. A maioria dos próprios Anarquistas Russos estava infelizmente ainda engatada nas limitadas atividades de grupo e de empenho individualista em comparação aos mais importantes esforços sociais e coletivos. Os Anarquistas, o futuro historiador imparcial vai admitir, desempenharam um papel muito importante na Revolução Russa — um papel muito mais significativo e frutífero do que o seu número relativamente pequeno poderia fazer crer. Contudo, a honestidade e a sinceridade me compelem a afirmar, o trabalho deles teria sido de um valor prático infinitamente maior estivessem eles melhor organizados e equipados para guiar as energias liberadas do povo para a reorganização da vida sobre uma base libertária.
Mas o fracasso dos Anarquistas na Revolução Russa — no sentido recém-indicado — não demonstra de forma alguma a derrota da ideia libertária. Pelo contrário, a Revolução Russa mostrou sem sombra de dúvida que a ideia do Estado, o Socialismo de Estado, em todas as suas manifestações (econômica, política, social, educacional), é completa e irremediavelmente falida. Nunca antes em toda a história a autoridade, o governo, o Estado, se mostraram tão intrinsecamente estáticos, reacionários e até mesmo contra-revolucionários na prática. Basicamente, a completa antítese da revolução.
Continua sendo verdade, como tem sido através de todo progresso, que apenas o espírito e método libertários podem trazer ao homem um passo à frente em sua eterna busca por uma vida melhor, mais refinada, e mais livre. Aplicada aos grandes levantes sociais conhecidos como revoluções, essa tendência é tão potente quanto no processo evolutivo comum. O método autoritário tem sido um fracasso ao longo de toda história e agora ele falhou novamente na Revolução Russa. Até agora a inventividade humana não descobriu nenhum outro princípio exceto o libertário, pois o homem proferiu realmente a mais alta sabedoria quando disse que a liberdade é a mãe da ordem, não sua filha. Todos os princípios e partidos políticos à parte, nenhuma revolução pode ser verdadeira e permanentemente vitoriosa a menos que ponha seu veto enfático sobre toda tirania e centralização, e se esforce rigorosamente para fazer da revolução uma verdadeira reavaliação de todos os valores econômicos, sociais e culturais. Não a mera substituição de um partido político por outro no controle do Governo, não o encobrimento da autocracia pelos slogans proletários, não a ditadura de uma nova classe sobre uma antiga, não teatralidades políticas de qualquer tipo, mas a reversão completa de todos esses princípios autoritários será a única que servirá à revolução.
No campo econômico essa transformação precisa estar nas mãos das massas industriais: estas têm a escolha entre um Estado industrial e o anarco-sindicalismo. No caso do primeiro, a ameaça ao desenvolvimento construtivo da nova estrutura social seria tão grande quanto a do Estado político. Ele se tornaria um peso morto sobre o crescimento das novas formas de vida. Por essa exata razão o sindicalismo (ou industrialismo) sozinho não é, como seus defensores afirmam, suficiente em si mesmo. É somente quando o espírito libertário permeia as organizações econômicas dos trabalhadores que as múltiplas e diversas energias criativas do povo podem se manifestar e a revolução ser preservada e defendida. Apenas a iniciativa livre e a participação popular nos assuntos da revolução podem prevenir os terríveis equívocos cometidos na Rússia. Por exemplo, com combustível apenas a cem verstas [cerca de sessenta e seis milhas] de Petrogrado, não haveria necessidade da cidade sofrer com o frio, tivessem sido as organizações econômicas dos trabalhadores de Petrogrado livres para exercer sua iniciativa para o bem comum. Os camponeses da Ucrânia não teriam sido prejudicados no cultivo de suas terras se tivessem tido acesso às ferramentas agrícolas empilhadas nos armazéns de Kharkov e outros centros industriais, aguardando ordens de Moscou para sua distribuição. Estes são exemplos característicos do governamentalismo e da centralização Bolcheviques, o que deve servir como um aviso aos trabalhadores da Europa e da América sobre os efeitos destrutivos do Estatismo.
O poder industrial das massas, expresso através de suas associações libertárias — o Anarco-sindicalismo — é o único capaz de organizar com sucesso a vida econômica e levar adiante a produção. Por outro lado, as cooperativas, trabalhando em harmonia com os órgãos industriais, servem como os meios de distribuição e troca entre cidade e campo, e ao mesmo tempo unem em laço fraternal as massas industriais e agrárias. Um vínculo comum de serviço e apoio mútuo é criado, o que é a fortaleza mais forte da revolução — muito mais eficaz do que o trabalho forçado, o Exército Vermelho, ou o terrorismo. Só dessa forma a revolução pode agir como um fermento para acelerar o desenvolvimento das novas formas sociais e inspirar as massas a maiores realizações.
Mas as organizações industriais libertárias e as cooperativas não são os únicos meios na interação das complexas fases da vida social. Existem as forças culturais que, embora estreitamente relacionadas às atividades econômicas, têm ainda suas próprias funções a desempenhar. Na Rússia, o Estado Comunista tornou-se o único árbitro de todas as necessidades do corpo social. O resultado, como já descrito, foi a completa estagnação cultural e a paralisia de todo esforço criativo. Se tal derrota for ser evitada no futuro, as forças culturais, embora enraizadas no solo econômico, deverão manter ainda uma esfera independente e liberdade de expressão. Não adesão ao partido político dominante mas devoção à revolução, ao conhecimento, à habilidade, e - acima de tudo - ao impulso criativo deveriam ser os critérios de aptidão para o trabalho cultural.
Na Rússia isso foi quase impossível desde o início da Revolução de Outubro, devido à separação violenta entre a intelligentsia e as massas. É verdade que o primeiro responsável por essa divisão foi a própria intelligentsia, especialmente a intelligentsia técnica, que na Rússia se apegava tenazmente - como o faz em outros países - à aba da burguesia. Esse elemento, incapaz de compreender o sentido dos eventos revolucionários, se esforçou para conter a maré por meio da sabotagem em massa. Mas havia na Rússia outro tipo de intelligentsia - uma com um glorioso passado revolucionário de cem anos. Essa parte da intelligentsia manteve-se fiel ao povo, embora não pudesse aceitar sem reservas a nova ditadura. O erro fatal dos Bolcheviques foi que eles não fizeram distinção entre esses dois elementos. Eles enfrentaram a sabotagem com o terror generalizado contra a intelligentsia enquanto classe, inaugurando uma campanha de ódio mais intensa que a perseguição à própria burguesia – um método que criou um abismo entre a intelligentsia e o proletariado e ergueu uma barreira contra o trabalho de construção.
Lenin foi o primeiro a perceber esse erro criminoso. Ele apontou que era um grave engano levar os trabalhadores a acreditar que poderiam desenvolver as indústrias e engajar no trabalho cultural sem o apoio e a cooperação da intelligentsia. O proletariado não tinha o conhecimento nem o treinamento para a tarefa, e a intelligentsia precisava ser restituída à direção da vida industrial. Mas o reconhecimento de um erro nunca preservou Lenin e seu partido de imediatamente cometerem outro. A intelligentsia técnica foi chamada de volta sob termos que adicionaram mais desintegração ao antagonismo contra o regime.
Enquanto os trabalhadores ainda passavam fome, engenheiros, especialistas industriais, e técnicos recebiam altos salários, privilégios especiais, e as melhores rações. Eles se tornaram os empregados mimados do Estado e os novos capatazes das massas. Estas, alimentadas por anos dos ensinamentos falaciosos de que o músculo sozinho é suficiente para uma revolução vitoriosa e que só o trabalho manual é produtivo, e incitadas pela campanha de ódio que rotulava todo intelectual como um contra-revolucionário e especulador, não puderam se reconciliar com aqueles que haviam sido ensinadas a desprezar e desconfiar.
Infelizmente a Rússia não é o único país onde essa atitude proletária contra a intelligentsia prevalece. Em todos os lugares os demagogos políticos exploram a ignorância das massas, as ensinam que educação e cultura são preconceitos burgueses, que os trabalhadores podem deixá-las para lá, e que eles sozinhos são capazes de reconstruir a sociedade. A Revolução Russa deixou muito claro que tanto o cérebro quanto os músculos são indispensáveis para o trabalho de regeneração social. Trabalho intelectual e físico estão intimamente relacionados no corpo social, tal como o cérebro e as mãos no organismo humano. Um não pode funcionar sem o outro.
É verdade que a maioria dos intelectuais consideram a si mesmos uma classe separada e superior aos trabalhadores, mas as condições sociais estão rapidamente demolindo esse pedestal elevado da intelligentsia. Eles estão tendo que perceber que eles, também, são proletários, ainda mais dependentes do patrão econômico que o trabalhador manual. Diferentemente do proletário físico, que pode pegar suas ferramentas e andar pelo mundo em busca de novas oportunidades para sair de uma situação desfavorável, os proletários intelectuais têm suas raízes mais firmemente fixadas em seu ambiente social específico e não conseguem tão facilmente mudar sua ocupação ou modo de vida. Portanto é de máxima importância tornar evidente aos trabalhadores a rápida proletarização dos intelectuais e o vínculo comum criado dessa forma entre eles.
Se o mundo ocidental deseja aprender com as lições da Rússia, a lisonja demagógica das massas e o antagonismo cego contra a intelligentsia devem cessar. Isso não significa, porém, que os trabalhadores devam depender inteiramente do elemento intelectual. Pelo contrário, as massas devem começar desde já a se preparar e se equipar para a grande tarefa que a revolução lhes colocará. Elas devem adquirir o conhecimento e as habilidades técnicas necessárias para gerenciar e dirigir o intrincado mecanismo da estrutura industrial e social de seus respectivos países. Mas mesmo no melhor dos cenários, os trabalhadores precisarão da cooperação dos elementos profissionais e culturais. Da mesma forma, estes últimos devem perceber que seus verdadeiros interesses são idênticos aos das massas.
Uma vez que as duas forças sociais aprendam a se unir em um todo harmonioso, os aspectos trágicos da Revolução Russa seriam em grande parte eliminados. Ninguém seria fuzilado porque "um dia adquiriu uma educação". O cientista, o engenheiro, o especialista, o investigador, o educador e o artista criativo, assim como o carpinteiro, o maquinista, e os demais, são todos parte integrante da força coletiva que deve moldar a revolução no grande arquiteto do novo edifício social. Não ódio, mas união; não antagonismo, mas solidariedade; não fuzilamentos, mas compaixão – essa é a lição da grande derrocada russa para a intelligentsia assim como para os trabalhadores. Todos devem aprender o valor do apoio mútuo e da cooperação libertária. Contudo, cada um deve ser capaz de permanecer independente em sua própria esfera e em harmonia com o melhor que pode dar à sociedade. Somente assim o trabalho produtivo e o empenho educacional e cultural se expressarão em formas sempre novas e sempre mais ricas. Essa é para mim a abrangente e vital moral ensinada pela Revolução Russa.
IV
Nas páginas anteriores eu tentei apontar por que os princípios, métodos e táticas Bolcheviques falharam, e que princípios e métodos semelhantes aplicados em qualquer outro país, mesmo os de maior desenvolvimento industrial, também devem falhar. Eu mostrei ainda que não foi apenas o Bolchevismo que falhou, mas o próprio Marxismo. Ou seja, a IDEIA DO ESTADO, o princípio autoritário, foi à bancarrota pela experiência da Revolução Russa. Se eu fosse resumir todo o meu argumento em uma frase eu diria: A tendência inerente do Estado é concentrar, estreitar, e monopolizar todas as atividades sociais; a natureza da revolução é, ao contrário, crescer, expandir, e disseminar-se em círculos cada vez maiores. Em outras palavras, o Estado é institucional e estático; a revolução é fluente, dinâmica. Essas duas tendências são incompatíveis e mutuamente destrutivas. A ideia do Estado matou a Revolução Russa e ela deve ter o mesmo resultado em todas as outras revoluções, a menos que a ideia libertária prevaleça.
Vou ainda mais longe. Não é apenas o Bolchevismo, o Marxismo e o Governamentalismo que são fatais para a revolução bem como para todo o progresso humano vital. A principal causa da derrota da Revolução Russa jaz mais fundo. Ela pode ser encontrada em toda a concepção Socialista de revolução em si mesma.
A ideia dominante, quase unânime, de revolução — particularmente a ideia Socialista — é que a revolução é uma mudança violenta das condições sociais através da qual uma classe social, a classe trabalhadora, se torna dominante sobre outra classe, a classe capitalista. É a concepção de uma mudança puramente física, e como tal envolve apenas reviravoltas políticas e rearranjos institucionais. A ditadura burguesa é substituída pela "ditadura do proletariado" — ou pela de sua "vanguarda", o Partido Comunista; Lenin ocupa a cadeira dos Romanovs, o Gabinete Imperial é rebatizado Soviete dos Comissários do Povo, Trotsky é nomeado Ministro da Guerra, e um trabalhador se torna o Governador Militar Geral de Moscou. Essa é, em essência, a concepção Bolchevique de revolução, conforme traduzida na prática. E com algumas pequenas alterações é também a ideia de revolução mantida por todos os outros partidos Socialistas.
Essa concepção é inerente e fatalmente falsa. A revolução é de fato um processo violento. Mas se for para resultar apenas em uma mudança de ditadura, em uma troca de nomes e personalidades políticas, então ela mal vale a pena. Ela certamente não vale toda a luta e o sacrifício, a estupenda perda em vidas humanas e em valores culturais que resulta de toda revolução. Se tal revolução fosse mesmo trazer maior bem estar social (o que não tem sido o caso na Rússia) então ela também não valeria o tremendo preço pago: meras melhorias podem ser feitas sem uma revolução sangrenta. Não são paliativos ou reformas o verdadeiro objetivo e propósito da revolução, como eu a concebo.
Na minha opinião — mil vezes mais fortalecida pela experiência Russa — a grande missão da revolução, da REVOLUÇÃO SOCIAL, é uma transvaloração fundamental dos valores. Uma transvaloração não apenas dos valores sociais, mas também dos valores humanos. Estes últimos são mesmo preeminentes, pois são a base de todos os valores sociais. Nossas instituições e condições descansam sobre ideias profundamente arraigadas. Mudar essas condições e ao mesmo tempo deixar intactas as ideias e valores latentes significa apenas uma transformação superficial, uma que não pode ser permanente ou trazer verdadeira melhoria. É uma mudança de forma apenas, não de substância, como foi tragicamente provado pela Rússia.
É tanto o grande fracasso quanto a grande tragédia da Revolução Russa que ela tentou (na liderança do partido político governante) mudar apenas instituições e condições enquanto ignorava inteiramente os valores humanos e sociais envolvidos na Revolução. Pior ainda, em sua paixão louca pelo poder, o Estado Comunista procurou mesmo fortalecer e aprofundar as exatas ideias e concepções que a Revolução tinha vindo destruir. Apoiou e encorajou todas as piores qualidades anti-sociais e destruiu sistematicamente a concepção já despertada dos novos valores revolucionários. O senso de justiça e igualdade, o amor pela liberdade e pela fraternidade humana — estes fundamentos da real regeneração da sociedade — o Estado Comunista suprimiu até o ponto do extermínio. O senso instintivo de equidade do homem foi rotulado como sentimentalismo fraco; a dignidade humana e a liberdade tornaram-se uma superstição burguesa; a santidade da vida, que é a própria essência da reconstrução social, foi condenada como não-revolucionária, quase contra-revolucionária.
Essa tenebrosa perversão de valores fundamentais carregava em si mesma a semente da destruição. Com a concepção de que a Revolução era apenas um meio de garantir o poder político, era inevitável que todos os valores revolucionários fossem subordinados às necessidades do Estado socialista; na verdade, explorados para promover a segurança do poder governamental recém-adquirido. "Razões de Estado", disfarçadas como "interesses da Revolução e do Povo", tornaram-se o único critério de ação, e até mesmo de sentimento. A violência, a inevitabilidade trágica das sublevações revolucionárias, tornou-se um costume estabelecido, um hábito, e foi logo empossada como a instituição mais poderosa e "ideal". Não foi Zinoviev mesmo que canonizou Dzerzhinsky, o líder da sanguinária Tcheka, como o "santo da Revolução"? Não foram as maiores honras públicas prestadas pelo Estado a Uritsky, o fundador e sádico patrão da Tcheka de Petrogrado?
Essa perversão dos valores éticos logo cristalizou-se no slogan supremo do Partido Comunista: OS FINS JUSTIFICAM TODOS OS MEIOS. De forma similar no passado a Inquisição e os Jesuítas adotaram esse lema e subordinaram a ele toda moralidade. Ele acabou se vingando dos Jesuítas como o fez com a Revolução Russa. A reboque desse slogan seguiram mentiras, fraude, hipocrisia e traição, assassinatos, abertos e secretos. Deve ser de máximo interesse para os estudiosos da psicologia social que dois movimentos tão amplamente separados no tempo e nas ideias, como o Jesuitismo e o Bolchevismo, alcançaram resultados exatamente semelhantes no desenvolvimento do princípio de que os fins justificam todos os meios. O paralelo histórico, quase totalmente ignorado até agora, contém uma lição de mais alta importância para todas as futuras revoluções e para todo o futuro da humanidade.
Não há maior falácia do que a crença de que fins e propósitos são uma coisa, enquanto métodos e táticas são outra. Essa concepção é uma ameaça potente à regeneração social. Toda experiência humana ensina que métodos e meios não podem ser separados do objetivo último. Os meios empregados tornam-se, através do hábito individual e da prática social, parte integrante do propósito final; eles o influenciam, modificam-no, e em breve os fins e meios se tornam idênticos. Desde o dia da minha chegada na Rússia eu o percebi, primeiro vagamente, depois consciente e claramente, cada vez mais. Os grandes e inspiradores objetivos da Revolução ficaram tão obscurecidos pelos métodos usados pelo poder político governante que era difícil distinguir o que era meio temporário e o que era o propósito final. Psicológica e socialmente os meios influenciam e alteram necessariamente os fins. Toda a história do homem é a contínua prova do ditado de que despir nossos métodos de conceitos éticos significa afundar nas profundezas da total desmoralização. Nisso reside a verdadeira tragédia da filosofia Bolchevique enquanto aplicada à Revolução Russa. Que essa lição não seja em vão.
Nenhuma revolução pode jamais ter sucesso enquanto fator de libertação a menos que os MEIOS usados para promovê-la sejam idênticos em espírito e tendência com os PROPÓSITOS a serem alcançados. A revolução é a negação do existente, um protesto violento contra a inumanidade do homem contra o homem e todas as mil e uma escravidões que isso envolve. Ela é a destruidora dos valores dominantes sobre os quais um sistema complexo de injustiça, opressão e injustiça foi construído através da ignorância e brutalidade. Ela é a arauta de NOVOS VALORES, inaugurando uma transformação das relações básicas do homem com o homem, e do homem com a sociedade. Não é uma mera reformadora, remediando alguns males sociais; não uma simples modificadora de formas e instituições; não é apenas uma redistribuidora do bem-estar social. Ela é tudo isso, mas é mais, muito mais. Ela é, antes de mais nada, a TRANSVALORADORA, a portadora de novos valores. Ela é a grande MESTRA da NOVA ÉTICA, inspirando o homem com um novo conceito de vida e suas manifestações nas relações sociais. Ela é a regeneradora mental e espiritual.
Seu primeiro preceito ético é a identidade dos meios usados e dos fins buscados. O fim último de toda mudança social revolucionária é estabelecer a santidade da vida humana, a dignidade do homem, o direito de cada ser humano à liberdade e ao bem estar. A menos que seja esse o objetivo essencial da revolução, mudanças sociais violentas não teriam justificativa. Pois alterações sociais externas podem ser, e têm sido, conseguidas pelos processos normais de evolução. Revolução, por outro lado, significa não apenas mudança externa, mas mudança interna, básica, fundamental. Essa mudança interna de conceitos e ideias, permeando mais e mais estratos sociais, culmina finalmente no levante violento conhecido como revolução. Que esse clímax reverta o processo de transvaloração, volte-se contra ele, o traia? Foi isso que aconteceu na Rússia. Ao contrário, a pŕopria revolução deve acelerar e levar mais longe esse processo do qual é a expressão cumulativa; sua principal missão é inspirá-lo, levá-lo a alturas maiores, dar-lhe o mais completo alcance de expressão. Só assim a revolução é fiel a si mesma.
Aplicado na prática isso significa que o período da revolução propriamente dito, o chamado estágio transitório, deve ser a introdução, o prelúdio das novas condições sociais. É o limiar da NOVA VIDA, da nova CASA DO HOMEM E DA HUMANIDADE. Como tal ele deve ter o espírito da nova vida, harmonioso com a construção do novo edifício.
O hoje é o pai do amanhã. O presente lança sua sombra bem longe no futuro. Essa é a lei da vida, individual e social. Revolução que se aliena dos valores éticos estabelece assim a fundação da injustiça, engano, e opressão para a sociedade futura. Os meios usados para preparar o futuro tornam-se o seu alicerce. Testemunhe a condição trágica da Rússia. Os métodos de centralização estatal paralisaram a iniciativa e o esforço individuais; a tirania da ditadura intimidou o povo à submissão servil e praticamente extinguiu as chamas da liberdade; o terrorismo organizado depravou e brutalizou as massas e sufocou toda aspiração idealista; o assassinato institucionalizado barateou a vida humana, e todo senso da dignidade do homem e do valor da vida foi eliminado; a coerção a cada passo tornou o esforço amargo, o trabalho um castigo, transformou toda a existência em um esquema de mentira mútua, e reviveu os instintos mais baixos e brutais do homem. Uma lamentável herança para começar uma vida nova de liberdade e irmandade.
Não pode ser suficientemente enfatizado que a revolução é em vão a menos que seja inspirada pelo seu objetivo final. Os métodos revolucionários devem estar em sintonia com os objetivos revolucionários. Os meios usados para promover a revolução devem harmonizar-se com seus propósitos. Em resumo, os valores éticos que a revolução deve estabelecer na nova sociedade devem ser iniciados com as atividades revolucionárias do chamado estágio transitório. Este último pode servir como uma ponte real e confiável para a vida melhor apenas se construída com o mesmo material que a vida a ser alcançada. Revolução é o espelho do dia que virá; ela é a criança que será o Homem de Amanhã.